2014-02-28

M65 - Chanel nº 5
Num belo fim de tarde, no Luquembo, deambulava pelo quimbo em geito de encontrar um motivo e gente boa para uma conversa.
Por peculiar sortilégio, tinha o pensamento focado na memória de Alberto Jales, cujo óbito ocorrera cerca de um ano antes (Out71) e via-me, na passada, a organizar,e trautear trocadilhos baseados em  títulos de versos  por ele escritos e cantados de forma soberba pela Amália: “Foi Deus” e “Vou dar de beber à dor”.
E nas voltas que o mundo dá suspendi a injúria e fixei-me na terra que pisava e na direcção tomada; era o arruamento estreito, tantas vezes percorrido e que me levava a passar em frente à casa pequena, de adobe cuidado, porta e janela minúsculas e cobertura zincada, o que a destacava das demais
E perpassam adjectivos, numa sequência de quase delírio … boémia, bizarra, fadista, … mas que aos poucos se instalam e ajudam a acordar o que recordava da letra de um outro fado da Amália:
A Júlia Florista boémia e fadista/ … figura bizarra/ … vendia flores, mas os seus amores jamais os vendeu/ … chinela no pé um ar de ralé, um geito de andar …
Era um facto, a deambular, vinha em busca do remanso da Júlia.
A Júlia era rapariga de corpo jovem e escorrido, senhora de uma inteligência prática notável, com resposta rápida, algumas vezes bregeira e que não embarcava em qualquer inutilidade.
Gostava de conversar com ela, palavras que iam ganhando o sabor da Nocal e navegavam em nuvens de fumo de cigarros ou de quando em vez do mutopa partilhado.
Com os meses que levava a comissão e a frequência das deslocações à sanzala, o sistema olfactivo já estava um pouco embotado.
Mas naquele fim de tarde ao entrar na casa da Júlia, havia algo de inusitado de que o inconsciente deu conta, mas que tardei a identificar.
Fitava-a e ela ria baixinho, quase envergonhada; só decorridos alguns segundos, associei que tal decorria do meu duplo “snifar”. A partir daqui foi fácil descobrir
Eis a estória:
Há cerca de dois meses, o Alf G., de partida para umas férias na Metrópole, tinha prometido à Júlia que lhe ia trazer de prenda um colar, coisa que ele sabia ia bem com a vaidade da rapariga.
Vinha já no avião, de regresso, quando se apercebeu que ia estar em falta ao prometido, e nas circunstâncias emendou para uma compra duty-free, no caso um frasquinho de perfume
Na hora de chegada justificou-se como pode, e ofereceu o Chanel nº5, cuja fragância eu, uns dias depois, estava a ter oportunidade de rever; diga-se, uma fragância resplandecente sobre o corpo chocolate, impoluto de suores, com que fazia questão de surgir, garbosa, em cada fim de tarde.

Precisavas de sair da água
Pura como uma gota erguida
Por uma onda nocturna


   Pablo Neruda, in “Os Versos do Capitão”




Azevedo

2 comentários:

  1. Perfumadinha e cor de chocolate !!! Uma leitura fácil, fluída, mas que me leva ao Lucusse, a Angola !!! Um bem-hajas, meu amigo. Um abraço grande.

    Feio

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  2. Júlia ueh! Foi Luquembo, mas pode o tempo da imaginação levá-la ao Lucusse

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