2013-11-28

M59 - Vivências da minha guerra

Leste de Angola – 1972 / 1974

Para me livrar de alguns fantasmas, que conforme vou envelhecendo mais se acentuam e povoam as minhas memórias, vou narrar alguns factos/casos da minha guerra, que são comuns a milhares de “jovens” que, tal como eu, tiveram vivências muito semelhantes nos cenários de guerra do Ultramar.

Tudo começou nas Caldas da Rainha, com a recruta lembro-me perfeitamente da chegada ao Quartel, e as primeiras vivências da vida militar), e depois Vendas Novas – que era um deserto e um inferno - (e onde contactei pela primeira vez com percevejos…) onde tirei a especialidade de atirador de artilharia (que mais não era que ser atirador...de G3). Em jeito de preâmbulo, acrescento que, como sou canhoto, detestava fazer fogo, porque, entre outras coisas, levava com os invólucros das balas na cara …(se bem se lembram a “janela de ejecção” dos invólucros era do lado direito da G-3).
Depois seguiu-se V. N. Gaia, onde formamos Batalhão (passei 3 Natais na tropa, porque na noite de Natal de 1971 estive de “Sargento de dia” no Rap. 2 – e mais dois em Angola…) e de seguida Viana do Castelo, onde fizemos o I.A.O.
Pelo menos estava perto de casa !!!
E, finalmente, a tão indesejada partida para o desconhecido - para a inóspita e distante África !!!

Depois de me despedir da minha mãe, irmãos e namorada na Póvoa de Varzim, eis-me a caminho do Viana do Castelo, onde estávamos aquartelados (na “Fortaleza”) para daí rumarmos a Lisboa e partirmos para Angola.
Fizemos a viagem de autocarro, tentando a malta aliviar o ambiente, mas o ânimo não era muito, como se compreenderá.
Partimos em pleno Verão – Julho/1972 – deixando para trás família, namorada, amigos.
Mas que aperto forte no peito !!! Que vontade de chorar !!! Mas um homem, e muito menos um tropa (ainda que um “puto” de 21 anos) não chora….
De Lisboa a Luanda viajamos de avião (para mim e concerteza para a grande maioria, senão mesmo para a totalidade, era a 1ª vez !!!! que o fazíamos).
Fui invadido por um tumulto de emoções e sentimentos contraditórios que se acentuaram com a chegada a Luanda.
Que sufoco, que calor (!), esse sim, foi o primeiro impacto do NOVO MUNDO, logo que saímos do avião… o contacto com o inóspito e desconhecido!!!
Fomos encaminhados para o Grafanil (género de depósito da tropa), e sinceramente não tenho ideia de que tempo aí estivemos.
Lembro-me, isso sim, da viagem até Nova Lisboa, Luso, Lucusse, Lunhamége…. desde o litoral até à “mais profunda” Angola – viagem inesquecível, pelos mais variados motivos:- cansaço, medo, deslumbramento, curiosidade….
Viagem feita em autocarros (?) ou berliets (?) na 1ª etapa (até Nova Lisboa) e depois de comboio até ao Luso, até que…eis-nos chegados a casa….
Lunhamége….imensa mata no Leste de Angola.
Aquartelamento ? Não !!! Um amontoado de tendas, num lugar no fim do mundo, com pó, muito pó, por todo o lado, sem uma única sombra, sem água, a não ser a que existia num lago (?) onde se tomava banho, onde os animais bebiam, onde se lavava a roupa, e se recolhia a água para a comida…e foi aí que vivemos durante um ano, fazendo no essencial protecção a JAEA, que andava a abrir e construir a estrada que, vinda do Luso ligaria à fronteira com a Zâmbia. Andamos nessa missão de protecção da JAEA até Lumbala, onde no dia de S. Martinho/73, apanhamos o 1º grande susto!!! A meio da tarde estávamos a jantar (sim, porque como não tínhamos luz eléctrica, jantávamos antes do anoitecer) quando, de repente, ouvimos um grande estrondo, como se fosse um trovão fortíssimo. Estávamos a ser atacados, julgávamos nós!!! Instalou-se um autêntico pânico entre o pessoal. Passados uns minutos, chegamos à conclusão que o ataque (com mísseis!!!!) estava a ser direccionado para o aquartelamento que ficava do outro lado do rio (Zambeze).
Se fosse connosco era uma tragédia. E porquê ? Porque vivíamos em barracas de lona, tínhamos um morteirozito, e a nossa protecção e abrigo era uma barreira de cerca de meio metro à volta das tendas!!! Parece mentira, mas é verdade.
Por aqui se pode imaginar como vivíamos mesmo ao ´”Deus-dará”…
À noite na companhia do Capitão Lopes- Comandante da Companhia - fomos ao outro lado ver os “estragos” provocados pela flagelação. Lembro-me perfeitamente que o campo de futebol, onde tínhamos jogado de manhã, tinha umas enormes crateras dos impactos dos mísseis disparados!!! Se o ataque tivesse ocorrido nessa manhã, talvez não estivesse agora a relatar estes acontecimentos!!!!
Parecíamos autênticos “bichos do mato” quando vínhamos à sede do Batalhão, ao Lucusse, e não me posso esquecer uma vez que fomos ao Luso !!! Cheios de pó até às entranhas, extenuados e cada viagem era uma autêntica aventura.
Parecíamos crianças deslumbradas com um brinquedo !!!
Ver gente diferente, ver mulheres (tínhamos 20/21anos !!!), poder respirar outro ar….era para nós um deslumbramento, porque vivíamos “noutro mundo”…
Ao fim de um ano, vim ao “puto” gozar um merecido mês de férias que voaram num ápice….
E o regresso custou tanto…oh, como custou….
Passado mais um tempo, rodamos para o Luando, uma zona relativamente perto de Silva Porto.
Pensávamos nós que iríamos descansar…como era razoável e merecedor.
Sonhávamos todos com a ida para o Sul, para gozo de férias, mas infelizmente saiu-nos na rifa o Luando….
Aí já havia um quartel, com casernas, cantina organizada, enfim, até havia um posto de polícia e uma casa onde vivia um agente da Pide/DGS….
A vida foi correndo, com muitas saídas para o mato, em operações militares, e com muitas futeboladas e patuscadas à mistura e sem grandes sobressaltos.
No dia 1 de Janeiro de 2004 fomos surpreendidos com um ataque da Unita a um aldeamento – Sarieza, que ainda distava do quartel uns 30/40 kms.
Fui incumbido pelo Capitão para, com um grupo de homens (uma meia dúzia) irmos para o local, o que fizemos.
Por lá ficamos uns 2/3 dias, sem novidades.
O pior estava para vir… com o aproximar do fim da nossa comissão.
Em Fevereiro/Março de 74 gozei o meu segundo mês de férias em Luanda, onde estava a minha mulher vinda da Metrópole, e com quem tinha casado em Luanda poucos meses antes, na Igreja da Sagrada Família.
Findas as férias, regressado ao quartel (e com a minha mulher a caminho de casa, na Metrópole), fui informado pelo Capitão, mal acabei de chegar ao quartel, que no dia seguinte iria integrado no 3º pelotão, no lugar do Miranda, meu amigo e colega, partir para uma base táctica (destacamento de um mês, num outro aquartelamento – em Cangumbe, perto do Munhango, onde estava sedeada a CART. 6551 - onde fazíamos várias operações militares e batidas à Unita. Aí, encontrei dois amigos poveiros:- o Álvaro Campos e o Isidro Marafona – o mundo é mesmo pequeno !!!), uma vez que aquele meu amigo ainda veio nessa altura de férias à Metrópole.
Era de Vila Chã, Vila do Conde, o meu amigo Carlos Miranda da Silva. Estou a vê-lo, alto, de olhos claros…. Bom companheiro, bom amigo.
Regressado o Miranda, eis que é a vez do meu pelotão – o 1º - partir para a base táctica.
Como eu tinha ido integrado no pelotão do Miranda aquando das suas férias, naturalmente foi ele integrado no meu pelotão na meu lugar …
No dia 6 de Maio de 1974, quando regressavam da base táctica, uma emboscada da UNITA, que incidiu fogo sobre a 1ª Berliet da coluna (vinham perto de 100 homens em várias viaturas) fez uma autêntica razia: - 6 mortos e muitos, muitos feridos !!!!!
A 1ª Berliet era onde vinha o pessoal do meu pelotão, com quem eu andava sempre, e foi aí que morreram 6 amigos meus, no meio do mato, longe de casa, longe da família, numa guerra estúpida e sem sentido…e já depois do 25 de Abril!!!!! Numa situação normal eu estaria ali !!!
E estávamos a completar 2 anos de mato!!!! Tínhamos a comissão de serviço praticamente no fim !!!!
Para que conste, o nome dos seis jovens, que nada tinham a ver com aquela guerra:- Miranda, Alexandre, Ferraz, Rochinha, Almeida (cabo cozinheiro – que nunca saía do Quartel - que tinha ido gozar férias e vinha de regresso …) e “Ribeiro Guimarães” (condutor-auto).
Fui ao local da emboscada com um grupo de homens, comandados pelo próprio Capitão, mas a tragédia já tinha acontecido. Cruzamo-nos com alguns homens que vinha a fugir, espavoridos !!!
Só me lembro do Alf. Abrantes, branco como a cal, levantar a camisa, e me mostrar um raspão de uma bala…e me ter preocupado em saber junto dos que tinham escapado se estava tudo bem (e entre eles, o meu conterrâneo Raúl).
Fiquei muito abalado, ficamos todos, com o sucedido.
Andei uns dias mesmo transtornado, traumatizado com o sucedido, porque pensava (e bem) que o Miranda tinha morrido na minha vez…
Para mitigar a minha dor, passados uns dias recebi uma carta onde a minha mulher me dava conta do nascimento do “nosso Ruquinha”.
Já era pai !!! O meu filho nasceu no dia 24 de Abril, mas eu só soube da notícia passados quase 15 dias…. Não havia telemóveis, nem internet, nem telegramas, no mato….
Passados uns tempos (em Junho/Julho), metade da Companhia foi destacada para Luanda, para a Intervenção. E eu fui um dos que marchei em direcção a Luanda.
Começava a fazer-se sentir o conflito da Independência em Luanda.
Alinhávamos 24 horas e descansávamos outras 24 horas.
Fazíamos patrulhamento nos musseques, em redor de Luanda.
Mas aí a guerra já era diferente, com cada um a pensar por si e no tempo que faltava mas era para tudo acabar de vez.
Até que em Setembro (dia 19???) embarcamos com rumo a Lisboa e ao fim da guerra.
Viajei de comboio até ao Porto e daí de táxi até casa em companhia do meu amigo Raul, também poveiro.
Enfim na Póvoa, com o seu cheirinho a maresia, em casa, com a minha mulher, o meu filhinho já com 4 meses, a minha mãe, os meus irmãos,
Outra guerra começava…a vida de todos os dias, guerra esta diferente, mas igualmente difícil, que ainda hoje se mantém viva na labuta do dia-a-dia.

Rui Bacelar (ex-Furriel)
Cart. 3540 – Angola – 1972- 1974

2013-11-25