2013-12-05

M60 - Adeus até ao meu regresso
Um dos icones da guerra colonial, é feito de palavras: “adeus até ao meu regresso”.
Mantem-se no imaginário dos expedicionários que o verbalizaram ou sonharam poder fazê-lo, bem como dos familiares, das noivas e dos amigos que, por entre dificuldades várias, ansiaram por ouvi-lo, quer pelas ondas da rádio (na altura a EN), quer, com o acrescento da imagem do falante, nas emissões da então RTP; … afinal de toda uma geração.
O epifenómeno nasceu com a gravação das mensagens natalícia e de fim de ano, reservadas ao corpo expedicionário. As que se destinavam a serem emitidas no que, à época, era o canal  único de TV, exigiam recursos técnicos com alguma sofisticaçãp; porém, quase sempre ficaram aquém dos objectivos, devido à manifesa incapacidade ou intenção, de produção de cenários naturais verosimeis; os actores principais embora empenhados, reflectiam problemas diversos da sociedade de que o vira nascer, designadamente a fraca escolaridade (cerca de 25% dos soldados não tinham na altura a 4ª classe), a dificuldade de sociabilidade, e um natural pouco à vontade para enfrentar procedimentos técnicos que eram pouco usuais ou de um cronometro omnipresene
Apesar de tudo, o “adeus até ao meu regresso” acabou  por se tornar um assunto abrangente; ou ainda se quisermos ir mas longe, susceptivel de se considerar como a singular, para não dizer a única frase “patriótica” que os mobilizados proferiam; foi também a mais transmitida nas acções de propaganda, que pretendia mostrar que os soldados estavam bem e se recomendavam.
Mas, cesse o julgamento porque "melhor experimentá-lo que julgá-lo", como escreveu o vate.
Não foi o caso tê-lo experimentado, mas andei lá perto depois de ter combinado uma colaboração em part time na gravação das mensagens de Natal da CCS.
E em que circunstâncias!
Estavamos ainda no sexto mês de comissão, que era também o penúltiplo de 1972. Numa conversa, que se poderia designar de programação informal de actividades-de-que-passe-o-tempo, ficaram definidas duas intervenções:
Primeira, a de programar e levar à cena uma festa de natal
Segunda, a de, conforme acima refiro, gravar mensagens natalicias de pessoal da contingentação da CCS, isto é do, como é sabido, recrutamento angolano, que como era uso e costume , era incorporado para completar os efectivoso das unidades metropolitnas.
É de elementar justiça, relevar que o grande dinamizador destas actividades, foi o furriel M. Para além de pessoa com singulares conhecimentos técnicos de electromecanica, que não se escusava compartilhar, conseguia brilhar em capacidade criativa onde acontecia a escassez de meios e não menos importante, era senhor de uma boa disposicão contagiante.
Portanto, o homem certo para liderar os dois projectos em carteira e como se verá, torná-las um acontecimento.
As gravações, foram a primeira acção a ser agendada.
Tratando-se apenas de registo de voz, bastavam um gravador e um microfone; acessoriamente era necessário disposição e talento para sortear os contemplados, disponibilidade para ajudar onde necessário, na estruturação da mensagem, no treino de dicção, ou na gravação da mesma e anotar identificação do falante, bem como os contactos dos que se esperava viessem a escuta-la. 
Na data-hora aprazados, avancei para o lugar combinado, que era a secção de radiomontadores, Já a aguardar, estavam o furriel M, o cabo C e mais dois ou três pandegos, habituais nas nossas práticas noturnas; mais tarde chegaram os alferes A. e M.. No exterior continuava a aguardar o grupo dos principais interessados na gravação (que no que se segue serão designaos de mensageiros), grupo constituido por pessoal de cor; era manifesta uma capacidade de desenrascanço e um espirito de iniciativa suficiente que levavam a acreditar que, quase todos, já estivessem de posse de um papel com a relação das pessoas a que vão dedicar a mensagem e o teor da mesma.
Nós, tinhamos feito o trabalho de casa e também estavamos ansiosos por começar.
Eu o furriel M. e o cabo C. sentamo-nos e um lado da mesa, e no oposto ficou uma cadeira vazia  a aguardar por cada um dos mensageiro.
O furriel M. verifica as ligações do equipamento, que se encontrava na extrema da mesa próxima do lugar que ocupava e deslocou uma caixa de cartão para ficar em frente, talvez ligeiramente à direita do eixo da cadeira vazia.
Pessoa menos avisada dirá que esta caixa em tempos, seviu para acondicionar um par de sapatos e agora, considerando a tarefa que está em curso e o facto de sob a tampa emegir um cabo que termina no gravador master, albergará um microfone.
Obtido o OK, o cabo C, levanta-se, entreabre a porta e chama o primeiro mensageiro da lista. Ele entra e sauda, após o que lhe sugerido que se ocupe a cadeira vazia. Sentado, no rosto um sorriso curto e o olhar de uma criança assustada que enfrenta pela primeir vez um juri de exame, o que inesperadament me traz, da memória profunda, registos da minha 4ª classe; mãos apoiadas e pouco contidas, volteiam o papel em eu escreveu a mensagem que espera gravar. Esforçamo-nos por criar um clima de descontração, dizendo-lhe que estamos na época natalicia e que dadas as circunstâncias queremos, ou esperamos para todos, uma noite bem passada. Seguem-se duas ou três perguntas, indagando sobre as pessoas a quem ele dedica a mensagem, nome das namoradas, e coisas assim. O sorriso fica mais solto, e amigável.
Atingimos o nivel de decontração suficiente para testar o que quer gravar … comoça a ler …faz-se um ou outro trocadilho com o que vai dizendo … quando conclui, ouve-se um “muito bem!”, ao que alguém do lado acrescenta um “vai um golinho de Nocal?” (não se oferece uma garrafa, porque de facto as disponiveis não chegam para todos) …
Parece que está tudo a correr conforme previsto e necessário a um bom momento de descontração.
Passa-se então à segunda fase, a de informação sobre o procedimento de gravação
Aqui, no esboço de guião que tinhamos feito, relevava-se a necessidade de informar sobre a rotina de gravação e garantir que, no início desta, a atenção do mensageiro estivesse focada no papel em que tinha escrito a mensagem; para o efeito, havia que ser algo incisivo no enunciar das instruçõeso, rápido no acessório, mais lento e enfático no fundamental
Tendo em consideração estes pressupostos, a mensagem final, teria de ser, algo imperativa, qualquer coisa como (e cito de memória): “rapaz, tens aqui o gravador onde as palavras vão ficar registadas, o microfone está nesta caixa, para estar protegido do barulho que estamos a fazer, … as palavras são as que estão neste papel que colocas aqui à tua frente e que já sabes ler na perfeição… a caixa do microfone está  aqui à direita, coloca a mão junto da tampa da caixa … ao meu sinal, silêncio total, …  retiramos a tampa da caixa,  … sem desviares o olhar do papel, sacas o microfone e começas a ler … o microfone sempre bem junto da boca … olha ali (estava o cabo C. exemplifica com um microfone alternativo)… compreendido??? … vou repetir …”
Acenou com a cabeça, quase sem descolar o olhar do papel, o que é bom.
Sem mais delongas dá-se uma ordem final: “atenção, ao contar “três”, tens de, sem tirar o olhar do papel, pegar no microfone, e começas a ler! … silêncio! … um, dois e TRÊS!”  
Acto continuo o furriel M. acciona o gravador e com a outra mão entreabre a caixa de cartão, para facilitar o acesso ao micro.
E …  o soldado, como bom soldado, cumpre conforme ordenado, retira o artefacto da caixa de cartão, aproxima-o da boca e começa a debitar a mensagem, … mas hélas! interrompe com exclamação súbita, a que se segue uma grande e genuina gargalhada; ainda estou a ouvir: “aqui fala o soldado F … c’um C*****HO!!!…”.

Fotografia do micro, fantasiado no Carnaval de 1973

Risadas desbragadas, que se tentam controlar para não colocar de sobreaviso os que estão no exterio, mas não é fácil.
Depois far-se-á silêncio para gravar a sério. E a mensagem que em situação normal seria grave com laivos de solenidade, a  reflectir as infinitas saudades que cada um sentia, evidencia agora  uma quota de optimismo e de partilha e adivinham-se-lhe, a intervalos, sorrisos contidos.
Veio depois outro mensageiro e mais outro e de cada vez o mesmo resultado fina de boa disposição, e de plena aceitaçao e participação no guião que tinhamos criado.
Creio que todos, os que foram seleccionados para gravar a mensagem, tiveram oportunidade de sentir o que afinal era uma oferta de abertura de relacionamento, que teve reflexos positivos nos tempos que se seguiram. 
Na parte que me toca, não foram poucas as vezes e os dias em que alguns dos mensageiros, depois, me visitaram na oficina, onde habitualmente parava, para saudar, dois dedos de conversa  e em geito de memórias boas, perguntar: “Alfero, hoje não há gravações?”
Azevedo

6 comentários:

  1. Grande AZEVEDO!!! Mais um "escrito" espectacular!!! E que memória prodigiosa !!! Os meus PARABÉNS (que hoje são a dobrar). Que passes um dia muito feliz, com muita saúde e com todos aqueles que amas e que te amam. Um abraço grande.
    Feio

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  2. Amigo Azevedo:- Tens que ser tu mesmo a fazê-lo !!! Não te esqueças de, tal como fazes com os outros, colocar a tua foto de aniversário.

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  3. Como sempre. Gostei de ler. HJ

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  4. Temos de combinar uma petiscada na tasquinha de Belém para recordar e traçar o esqueleto de uma memória que tens de subscrever
    Grande abraço
    dna

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