2013-12-05

M60 - Adeus até ao meu regresso
Um dos icones da guerra colonial, é feito de palavras: “adeus até ao meu regresso”.
Mantem-se no imaginário dos expedicionários que o verbalizaram ou sonharam poder fazê-lo, bem como dos familiares, das noivas e dos amigos que, por entre dificuldades várias, ansiaram por ouvi-lo, quer pelas ondas da rádio (na altura a EN), quer, com o acrescento da imagem do falante, nas emissões da então RTP; … afinal de toda uma geração.
O epifenómeno nasceu com a gravação das mensagens natalícia e de fim de ano, reservadas ao corpo expedicionário. As que se destinavam a serem emitidas no que, à época, era o canal  único de TV, exigiam recursos técnicos com alguma sofisticaçãp; porém, quase sempre ficaram aquém dos objectivos, devido à manifesa incapacidade ou intenção, de produção de cenários naturais verosimeis; os actores principais embora empenhados, reflectiam problemas diversos da sociedade de que o vira nascer, designadamente a fraca escolaridade (cerca de 25% dos soldados não tinham na altura a 4ª classe), a dificuldade de sociabilidade, e um natural pouco à vontade para enfrentar procedimentos técnicos que eram pouco usuais ou de um cronometro omnipresene
Apesar de tudo, o “adeus até ao meu regresso” acabou  por se tornar um assunto abrangente; ou ainda se quisermos ir mas longe, susceptivel de se considerar como a singular, para não dizer a única frase “patriótica” que os mobilizados proferiam; foi também a mais transmitida nas acções de propaganda, que pretendia mostrar que os soldados estavam bem e se recomendavam.
Mas, cesse o julgamento porque "melhor experimentá-lo que julgá-lo", como escreveu o vate.
Não foi o caso tê-lo experimentado, mas andei lá perto depois de ter combinado uma colaboração em part time na gravação das mensagens de Natal da CCS.
E em que circunstâncias!
Estavamos ainda no sexto mês de comissão, que era também o penúltiplo de 1972. Numa conversa, que se poderia designar de programação informal de actividades-de-que-passe-o-tempo, ficaram definidas duas intervenções:
Primeira, a de programar e levar à cena uma festa de natal
Segunda, a de, conforme acima refiro, gravar mensagens natalicias de pessoal da contingentação da CCS, isto é do, como é sabido, recrutamento angolano, que como era uso e costume , era incorporado para completar os efectivoso das unidades metropolitnas.
É de elementar justiça, relevar que o grande dinamizador destas actividades, foi o furriel M. Para além de pessoa com singulares conhecimentos técnicos de electromecanica, que não se escusava compartilhar, conseguia brilhar em capacidade criativa onde acontecia a escassez de meios e não menos importante, era senhor de uma boa disposicão contagiante.
Portanto, o homem certo para liderar os dois projectos em carteira e como se verá, torná-las um acontecimento.
As gravações, foram a primeira acção a ser agendada.
Tratando-se apenas de registo de voz, bastavam um gravador e um microfone; acessoriamente era necessário disposição e talento para sortear os contemplados, disponibilidade para ajudar onde necessário, na estruturação da mensagem, no treino de dicção, ou na gravação da mesma e anotar identificação do falante, bem como os contactos dos que se esperava viessem a escuta-la. 
Na data-hora aprazados, avancei para o lugar combinado, que era a secção de radiomontadores, Já a aguardar, estavam o furriel M, o cabo C e mais dois ou três pandegos, habituais nas nossas práticas noturnas; mais tarde chegaram os alferes A. e M.. No exterior continuava a aguardar o grupo dos principais interessados na gravação (que no que se segue serão designaos de mensageiros), grupo constituido por pessoal de cor; era manifesta uma capacidade de desenrascanço e um espirito de iniciativa suficiente que levavam a acreditar que, quase todos, já estivessem de posse de um papel com a relação das pessoas a que vão dedicar a mensagem e o teor da mesma.
Nós, tinhamos feito o trabalho de casa e também estavamos ansiosos por começar.
Eu o furriel M. e o cabo C. sentamo-nos e um lado da mesa, e no oposto ficou uma cadeira vazia  a aguardar por cada um dos mensageiro.
O furriel M. verifica as ligações do equipamento, que se encontrava na extrema da mesa próxima do lugar que ocupava e deslocou uma caixa de cartão para ficar em frente, talvez ligeiramente à direita do eixo da cadeira vazia.
Pessoa menos avisada dirá que esta caixa em tempos, seviu para acondicionar um par de sapatos e agora, considerando a tarefa que está em curso e o facto de sob a tampa emegir um cabo que termina no gravador master, albergará um microfone.
Obtido o OK, o cabo C, levanta-se, entreabre a porta e chama o primeiro mensageiro da lista. Ele entra e sauda, após o que lhe sugerido que se ocupe a cadeira vazia. Sentado, no rosto um sorriso curto e o olhar de uma criança assustada que enfrenta pela primeir vez um juri de exame, o que inesperadament me traz, da memória profunda, registos da minha 4ª classe; mãos apoiadas e pouco contidas, volteiam o papel em eu escreveu a mensagem que espera gravar. Esforçamo-nos por criar um clima de descontração, dizendo-lhe que estamos na época natalicia e que dadas as circunstâncias queremos, ou esperamos para todos, uma noite bem passada. Seguem-se duas ou três perguntas, indagando sobre as pessoas a quem ele dedica a mensagem, nome das namoradas, e coisas assim. O sorriso fica mais solto, e amigável.
Atingimos o nivel de decontração suficiente para testar o que quer gravar … comoça a ler …faz-se um ou outro trocadilho com o que vai dizendo … quando conclui, ouve-se um “muito bem!”, ao que alguém do lado acrescenta um “vai um golinho de Nocal?” (não se oferece uma garrafa, porque de facto as disponiveis não chegam para todos) …
Parece que está tudo a correr conforme previsto e necessário a um bom momento de descontração.
Passa-se então à segunda fase, a de informação sobre o procedimento de gravação
Aqui, no esboço de guião que tinhamos feito, relevava-se a necessidade de informar sobre a rotina de gravação e garantir que, no início desta, a atenção do mensageiro estivesse focada no papel em que tinha escrito a mensagem; para o efeito, havia que ser algo incisivo no enunciar das instruçõeso, rápido no acessório, mais lento e enfático no fundamental
Tendo em consideração estes pressupostos, a mensagem final, teria de ser, algo imperativa, qualquer coisa como (e cito de memória): “rapaz, tens aqui o gravador onde as palavras vão ficar registadas, o microfone está nesta caixa, para estar protegido do barulho que estamos a fazer, … as palavras são as que estão neste papel que colocas aqui à tua frente e que já sabes ler na perfeição… a caixa do microfone está  aqui à direita, coloca a mão junto da tampa da caixa … ao meu sinal, silêncio total, …  retiramos a tampa da caixa,  … sem desviares o olhar do papel, sacas o microfone e começas a ler … o microfone sempre bem junto da boca … olha ali (estava o cabo C. exemplifica com um microfone alternativo)… compreendido??? … vou repetir …”
Acenou com a cabeça, quase sem descolar o olhar do papel, o que é bom.
Sem mais delongas dá-se uma ordem final: “atenção, ao contar “três”, tens de, sem tirar o olhar do papel, pegar no microfone, e começas a ler! … silêncio! … um, dois e TRÊS!”  
Acto continuo o furriel M. acciona o gravador e com a outra mão entreabre a caixa de cartão, para facilitar o acesso ao micro.
E …  o soldado, como bom soldado, cumpre conforme ordenado, retira o artefacto da caixa de cartão, aproxima-o da boca e começa a debitar a mensagem, … mas hélas! interrompe com exclamação súbita, a que se segue uma grande e genuina gargalhada; ainda estou a ouvir: “aqui fala o soldado F … c’um C*****HO!!!…”.

Fotografia do micro, fantasiado no Carnaval de 1973

Risadas desbragadas, que se tentam controlar para não colocar de sobreaviso os que estão no exterio, mas não é fácil.
Depois far-se-á silêncio para gravar a sério. E a mensagem que em situação normal seria grave com laivos de solenidade, a  reflectir as infinitas saudades que cada um sentia, evidencia agora  uma quota de optimismo e de partilha e adivinham-se-lhe, a intervalos, sorrisos contidos.
Veio depois outro mensageiro e mais outro e de cada vez o mesmo resultado fina de boa disposição, e de plena aceitaçao e participação no guião que tinhamos criado.
Creio que todos, os que foram seleccionados para gravar a mensagem, tiveram oportunidade de sentir o que afinal era uma oferta de abertura de relacionamento, que teve reflexos positivos nos tempos que se seguiram. 
Na parte que me toca, não foram poucas as vezes e os dias em que alguns dos mensageiros, depois, me visitaram na oficina, onde habitualmente parava, para saudar, dois dedos de conversa  e em geito de memórias boas, perguntar: “Alfero, hoje não há gravações?”
Azevedo

2013-11-28

M59 - Vivências da minha guerra

Leste de Angola – 1972 / 1974

Para me livrar de alguns fantasmas, que conforme vou envelhecendo mais se acentuam e povoam as minhas memórias, vou narrar alguns factos/casos da minha guerra, que são comuns a milhares de “jovens” que, tal como eu, tiveram vivências muito semelhantes nos cenários de guerra do Ultramar.

Tudo começou nas Caldas da Rainha, com a recruta lembro-me perfeitamente da chegada ao Quartel, e as primeiras vivências da vida militar), e depois Vendas Novas – que era um deserto e um inferno - (e onde contactei pela primeira vez com percevejos…) onde tirei a especialidade de atirador de artilharia (que mais não era que ser atirador...de G3). Em jeito de preâmbulo, acrescento que, como sou canhoto, detestava fazer fogo, porque, entre outras coisas, levava com os invólucros das balas na cara …(se bem se lembram a “janela de ejecção” dos invólucros era do lado direito da G-3).
Depois seguiu-se V. N. Gaia, onde formamos Batalhão (passei 3 Natais na tropa, porque na noite de Natal de 1971 estive de “Sargento de dia” no Rap. 2 – e mais dois em Angola…) e de seguida Viana do Castelo, onde fizemos o I.A.O.
Pelo menos estava perto de casa !!!
E, finalmente, a tão indesejada partida para o desconhecido - para a inóspita e distante África !!!

Depois de me despedir da minha mãe, irmãos e namorada na Póvoa de Varzim, eis-me a caminho do Viana do Castelo, onde estávamos aquartelados (na “Fortaleza”) para daí rumarmos a Lisboa e partirmos para Angola.
Fizemos a viagem de autocarro, tentando a malta aliviar o ambiente, mas o ânimo não era muito, como se compreenderá.
Partimos em pleno Verão – Julho/1972 – deixando para trás família, namorada, amigos.
Mas que aperto forte no peito !!! Que vontade de chorar !!! Mas um homem, e muito menos um tropa (ainda que um “puto” de 21 anos) não chora….
De Lisboa a Luanda viajamos de avião (para mim e concerteza para a grande maioria, senão mesmo para a totalidade, era a 1ª vez !!!! que o fazíamos).
Fui invadido por um tumulto de emoções e sentimentos contraditórios que se acentuaram com a chegada a Luanda.
Que sufoco, que calor (!), esse sim, foi o primeiro impacto do NOVO MUNDO, logo que saímos do avião… o contacto com o inóspito e desconhecido!!!
Fomos encaminhados para o Grafanil (género de depósito da tropa), e sinceramente não tenho ideia de que tempo aí estivemos.
Lembro-me, isso sim, da viagem até Nova Lisboa, Luso, Lucusse, Lunhamége…. desde o litoral até à “mais profunda” Angola – viagem inesquecível, pelos mais variados motivos:- cansaço, medo, deslumbramento, curiosidade….
Viagem feita em autocarros (?) ou berliets (?) na 1ª etapa (até Nova Lisboa) e depois de comboio até ao Luso, até que…eis-nos chegados a casa….
Lunhamége….imensa mata no Leste de Angola.
Aquartelamento ? Não !!! Um amontoado de tendas, num lugar no fim do mundo, com pó, muito pó, por todo o lado, sem uma única sombra, sem água, a não ser a que existia num lago (?) onde se tomava banho, onde os animais bebiam, onde se lavava a roupa, e se recolhia a água para a comida…e foi aí que vivemos durante um ano, fazendo no essencial protecção a JAEA, que andava a abrir e construir a estrada que, vinda do Luso ligaria à fronteira com a Zâmbia. Andamos nessa missão de protecção da JAEA até Lumbala, onde no dia de S. Martinho/73, apanhamos o 1º grande susto!!! A meio da tarde estávamos a jantar (sim, porque como não tínhamos luz eléctrica, jantávamos antes do anoitecer) quando, de repente, ouvimos um grande estrondo, como se fosse um trovão fortíssimo. Estávamos a ser atacados, julgávamos nós!!! Instalou-se um autêntico pânico entre o pessoal. Passados uns minutos, chegamos à conclusão que o ataque (com mísseis!!!!) estava a ser direccionado para o aquartelamento que ficava do outro lado do rio (Zambeze).
Se fosse connosco era uma tragédia. E porquê ? Porque vivíamos em barracas de lona, tínhamos um morteirozito, e a nossa protecção e abrigo era uma barreira de cerca de meio metro à volta das tendas!!! Parece mentira, mas é verdade.
Por aqui se pode imaginar como vivíamos mesmo ao ´”Deus-dará”…
À noite na companhia do Capitão Lopes- Comandante da Companhia - fomos ao outro lado ver os “estragos” provocados pela flagelação. Lembro-me perfeitamente que o campo de futebol, onde tínhamos jogado de manhã, tinha umas enormes crateras dos impactos dos mísseis disparados!!! Se o ataque tivesse ocorrido nessa manhã, talvez não estivesse agora a relatar estes acontecimentos!!!!
Parecíamos autênticos “bichos do mato” quando vínhamos à sede do Batalhão, ao Lucusse, e não me posso esquecer uma vez que fomos ao Luso !!! Cheios de pó até às entranhas, extenuados e cada viagem era uma autêntica aventura.
Parecíamos crianças deslumbradas com um brinquedo !!!
Ver gente diferente, ver mulheres (tínhamos 20/21anos !!!), poder respirar outro ar….era para nós um deslumbramento, porque vivíamos “noutro mundo”…
Ao fim de um ano, vim ao “puto” gozar um merecido mês de férias que voaram num ápice….
E o regresso custou tanto…oh, como custou….
Passado mais um tempo, rodamos para o Luando, uma zona relativamente perto de Silva Porto.
Pensávamos nós que iríamos descansar…como era razoável e merecedor.
Sonhávamos todos com a ida para o Sul, para gozo de férias, mas infelizmente saiu-nos na rifa o Luando….
Aí já havia um quartel, com casernas, cantina organizada, enfim, até havia um posto de polícia e uma casa onde vivia um agente da Pide/DGS….
A vida foi correndo, com muitas saídas para o mato, em operações militares, e com muitas futeboladas e patuscadas à mistura e sem grandes sobressaltos.
No dia 1 de Janeiro de 2004 fomos surpreendidos com um ataque da Unita a um aldeamento – Sarieza, que ainda distava do quartel uns 30/40 kms.
Fui incumbido pelo Capitão para, com um grupo de homens (uma meia dúzia) irmos para o local, o que fizemos.
Por lá ficamos uns 2/3 dias, sem novidades.
O pior estava para vir… com o aproximar do fim da nossa comissão.
Em Fevereiro/Março de 74 gozei o meu segundo mês de férias em Luanda, onde estava a minha mulher vinda da Metrópole, e com quem tinha casado em Luanda poucos meses antes, na Igreja da Sagrada Família.
Findas as férias, regressado ao quartel (e com a minha mulher a caminho de casa, na Metrópole), fui informado pelo Capitão, mal acabei de chegar ao quartel, que no dia seguinte iria integrado no 3º pelotão, no lugar do Miranda, meu amigo e colega, partir para uma base táctica (destacamento de um mês, num outro aquartelamento – em Cangumbe, perto do Munhango, onde estava sedeada a CART. 6551 - onde fazíamos várias operações militares e batidas à Unita. Aí, encontrei dois amigos poveiros:- o Álvaro Campos e o Isidro Marafona – o mundo é mesmo pequeno !!!), uma vez que aquele meu amigo ainda veio nessa altura de férias à Metrópole.
Era de Vila Chã, Vila do Conde, o meu amigo Carlos Miranda da Silva. Estou a vê-lo, alto, de olhos claros…. Bom companheiro, bom amigo.
Regressado o Miranda, eis que é a vez do meu pelotão – o 1º - partir para a base táctica.
Como eu tinha ido integrado no pelotão do Miranda aquando das suas férias, naturalmente foi ele integrado no meu pelotão na meu lugar …
No dia 6 de Maio de 1974, quando regressavam da base táctica, uma emboscada da UNITA, que incidiu fogo sobre a 1ª Berliet da coluna (vinham perto de 100 homens em várias viaturas) fez uma autêntica razia: - 6 mortos e muitos, muitos feridos !!!!!
A 1ª Berliet era onde vinha o pessoal do meu pelotão, com quem eu andava sempre, e foi aí que morreram 6 amigos meus, no meio do mato, longe de casa, longe da família, numa guerra estúpida e sem sentido…e já depois do 25 de Abril!!!!! Numa situação normal eu estaria ali !!!
E estávamos a completar 2 anos de mato!!!! Tínhamos a comissão de serviço praticamente no fim !!!!
Para que conste, o nome dos seis jovens, que nada tinham a ver com aquela guerra:- Miranda, Alexandre, Ferraz, Rochinha, Almeida (cabo cozinheiro – que nunca saía do Quartel - que tinha ido gozar férias e vinha de regresso …) e “Ribeiro Guimarães” (condutor-auto).
Fui ao local da emboscada com um grupo de homens, comandados pelo próprio Capitão, mas a tragédia já tinha acontecido. Cruzamo-nos com alguns homens que vinha a fugir, espavoridos !!!
Só me lembro do Alf. Abrantes, branco como a cal, levantar a camisa, e me mostrar um raspão de uma bala…e me ter preocupado em saber junto dos que tinham escapado se estava tudo bem (e entre eles, o meu conterrâneo Raúl).
Fiquei muito abalado, ficamos todos, com o sucedido.
Andei uns dias mesmo transtornado, traumatizado com o sucedido, porque pensava (e bem) que o Miranda tinha morrido na minha vez…
Para mitigar a minha dor, passados uns dias recebi uma carta onde a minha mulher me dava conta do nascimento do “nosso Ruquinha”.
Já era pai !!! O meu filho nasceu no dia 24 de Abril, mas eu só soube da notícia passados quase 15 dias…. Não havia telemóveis, nem internet, nem telegramas, no mato….
Passados uns tempos (em Junho/Julho), metade da Companhia foi destacada para Luanda, para a Intervenção. E eu fui um dos que marchei em direcção a Luanda.
Começava a fazer-se sentir o conflito da Independência em Luanda.
Alinhávamos 24 horas e descansávamos outras 24 horas.
Fazíamos patrulhamento nos musseques, em redor de Luanda.
Mas aí a guerra já era diferente, com cada um a pensar por si e no tempo que faltava mas era para tudo acabar de vez.
Até que em Setembro (dia 19???) embarcamos com rumo a Lisboa e ao fim da guerra.
Viajei de comboio até ao Porto e daí de táxi até casa em companhia do meu amigo Raul, também poveiro.
Enfim na Póvoa, com o seu cheirinho a maresia, em casa, com a minha mulher, o meu filhinho já com 4 meses, a minha mãe, os meus irmãos,
Outra guerra começava…a vida de todos os dias, guerra esta diferente, mas igualmente difícil, que ainda hoje se mantém viva na labuta do dia-a-dia.

Rui Bacelar (ex-Furriel)
Cart. 3540 – Angola – 1972- 1974

2013-11-25

2013-09-29

M57 - A sabotar a operação?!...
Tinha recebido o aviso para me dirigir, com carácter de urgência, à que conheciamos como a sala de operações.
Dou por mim a esconjurar demónios, enquanto em passada preguiçosa, atravessava o lanço de parada em que o Sol castigava mais; escasseavam-me ideias relativamente ao que ia.
Tinham-me dito, que de uma das companhias agregadas ao BArt caiam mensagens Z, que reportavam niveis elevados de inoperacionalidades das viaturas, que poderiam, no limite, inviabilizar uma operação, que se desenrolaria a partir do dia seguinte. Dava a informação como fiável, tanto mais que, nessa manhã, tinha tido um contacto via rádio com o pessoal do STM Auto dessa companhia, que tentava obter material (peças de motor e outras), que escasseava por lá.
Chegado, aguardavam-me, o oficial de operações e o segundo comandante do BArt, ambos de ar grave afivelado
Não tardou que começasse a perceber que me encontrava em mais uma cerimoniosa e militar tentativa de sacanear (para não dizer f….) alguém.
Gastas as introduções, foi-me exigido que declarasse, sob compromisso de honra, que cumpriria a missão que me ia ser confiada.
Naquela fase da comissão, já valia tudo, A loucura tinha deixado de ser o oposto à razão ou a sua ausência; como diria Hegel, a loucura de cada um, a considerada dentro do sujeito, possuia uma lógica própria.
A minha era uma mera questão de sobrevivência, tinha de majorar a dos outros.
Mentiria então se negasse que, por instantes, vivi no delirio imagético de me terem destinado uma missão gloriosa, acometido de plenos poderes que permitiriam enfrentar e vencer o duunvirato que, de quando em quando eu dizia gozando, governava aquela aldeia gaulesa (no caso a companhia infractora).
Desci à terra, quando por entre as nuvens ouvi “juras por tua honra?”
Só?!
Respondi: “…juro”
Ainda estava arrepiado com o eco da pronuncia, quando entra o sargento L. e em palavras mais breves que as que comigo tinham sido gastas, lhe é exigida a mesma promissão.
Em segundos, recapitulei os capitulos do filme em que estava: surpreso, louco, ajuramentado e … esclarecido
Tinha-me sido ordenada uma avaliação da operacionalidade das viaturas de uma unidade; embora não a tivessem invocado, era por demais evidente, que pairava a suspeita de que alguém estaria a sabotar o esforço de guerra, e eu era o miliciano escalado para o denunciar, queriam-me no papel do grande buffoon ... e cereja no topo do pastel, tinha sido nomeado o policia de serviço que, como convinha era sargento de carreira
Contrariando o que era boa norma, a coluna em que nos deslocamos, saiu cerca da meia noite.
À chegada ao local do crime - madrugada já avançada - aguardava-nos o Alf S, a quem de imediato, pedi que combinasse uma reunião urgente e sigilosa com o Capitão L.. Em menos e 10 minutos, estavamos a falar do que interessava; reportei o filme das últimas horas, passadas na CCS, qual era a minha perspectiva do que estava a acontecer e ao que estava obrigado
“Grandes f.da p…!”- exclamou o capitão.
Para conter o extase, acrescentei que considerava de grande responsabilidade a missão, mas que estava demasiado cansado, que não esgotado, para iniciar vistoria dos carros, pelo que seria preferivel repousar cerca de uma hora ou mais, para depois,  recuperado, levar a tarefa toda de seguida.
De facto, o Cap L. também já me tinha confirmado que, de acordo com o último ponto da situação que lhe tinham feito, não existia impedimento a que a início da operação oorresse na data-hora prevista.
Uma vez que o primeiro quesito do ordenante timha perdido significado, fomos falar com o Sargento L. que confirmou que também preferia deixar o resto das questões para depois de um curto periodo de descanso…
Certo é que a breve trecho cada um recolheu a aposentos.
Na parte que me toca, só acordei quando começaram a roncar os motores das viaturas da coluna em ordem de saida.para a operação. Vestido que estava, levantei-me de um lanço e dirigi-me ao exterior. O Cap L. afinal não se tinha deitado, teimando em assistir aos últimos preparativos da coluna, e agora, na partida desejava boa jornada a todos.
Ficamos à conversa; a breve trecho chegaram também os Alf L. e S, e a conversa, para variar, resvalou para os dislates do costume.
Não tinha ainda decorrido uma hora, quando chegou a primeira mensagem com informação de um alto da coluna, devido à viatura na frente da coluna ter accionado uma mina
Não havia feridos, mas era necessário recolher a Berliet.
Trabalho não ia faltar e ocorreu-me que era a oportunidade de ouro para verificar a operacionalidade do triângulo de reboque que tinhamos em fase de acabamento na oficina da CCS. Já tinham sido realizados alguns testes, mas aqui, no duro do terreno, seria diferente.
Enviou-se uma msg para o comando do batalhão, com o ponto de situação no local, e o pedido de acordo para: a) suspender a peritagem, b) avançar para zona da deflagração da mina e c) iniciar a preparação do reboque da viatura, para o que nos deveria ser enviado o triângulo de reboque que estava na oficina da CCS
Recebida a luz verde, arrancamos de imediato
Já tinha visto viaturas minadas, mas agora, pela primeira vez e no local era bem diferente: a frente da Berliet do lado esquerdo, pousada no chão, desfeita, ferro cortado e retorcidos, dando uma sugestão da imensidão e caminho da onda de explosão; ali um resto de pneu suspenso de uma jante partida, caida apenas a meia dúzia de metros, só porque o voo tinha sido interrompido pelo tronco de uma árvore, onde era visivel o ponto de impacto, a cerca de 4 metros do solo. Ainda sob a caixa da viatura, alinhado com um dos rodados, era visivel um buraco na picada, com menos de um metro de profundidade, o que permitia concluir tratar-se de uma mina A/C singela, isto é, que não tinha sido reforçada com outros explosivos.
Confirmei com o graduado do grupo que garantia a protecção à viatura, que já tinha sido verificada a não existência de sinais de minas A/P nas proximidades; fiquei agradado, mas mesmo assim comprometi-me a ser contido nas passadas.
Restava aguardar e aproveitar para fazer o desvaste de árvores e arbustos, tendo em vista facilitar a manobra da Berliet que iria fazer o reboque, bem como a manobra de inversão de marcha… e continuar a aguardar
Felizmente que a Berliet da CCS, já vinha com o triângulo de reboque instalado e com os cabos passados, o que abreviou o inicio do levantamento
Estivemos à beira do insucesso quando ao começar a erguer a Berliet sinistrada, os tubos que convergem na roldana superior, começaram desalinhar, evidenciando sub-dimensionamento das estruturas de reforço que tinham sido aplicadas. A salvação, o plano "b" estava no triângulo interior, que evidenciava estar bem ancorado (soldado) e estabilizado; cortou-se  um tronco de árvore, com diâmetro máximo admissível e comprimento suficiente para passar no interior deste triângulo e apoiar na caixa da Berliet, impedindo assim que a deformaçao dos tubos laterais progredisse.
Como pai desta solução de recurso e por via das dúvidas, assumi a condução desta Berliet-reboque e só viajaram na caixa os que também quiseram assumir riscos extra.
Duas horas depois a Berliet sinistrada estava a ser depositada no P.A.D. de Gago Coutinho.
Dias depois de regressados à CCS, os tubos deformados foram substituidos e reforçados em toda extensão com cantoneira de aço de abas iguais 5/16 x 3” (ver em M30 – Vamos buscá-las, deste blog).
Azevedo


2013-09-24

M56 - Somos menos


Séneca afirmou que “toda a vida devemos aprender a morrer”
Porque a morte é um passo biológico natural e certo … mas também humanamente dolorosa
Porém, quando se morre e se deixa saudades, é de felicitar quem foi e quem fica, significando tal que a pessoa foi querida e útil.
Por circunstâncias várias o meu relacionamento com o Teixeira ficou limitado praticamente, aos idos de 72 a 74. 
Mas não esquecemos, não ignoramos os laços de companheirismo que permanecem no tempo e permitem que cada encontro com os camaradas, comece como se a última vez que nos tivéssemos visto, ocorresse na véspera.
É certo que a Natureza por vezes é algo cruel, nesses encontros dificultando por formas diversas o reconhecimento, ora alterando a acuidade visual, ora estragando a imagem para além do que julgávamos admissível, mas o que por aí na gíria se designa de coração, mantem viva a memória desses  tempos, em que os rapazes se fizeram homens e as amizades se definiram caldeadas por perigos, contrariedades e loucuras.
Ainda em Junho último, tive oportunidade de falar com o que, creio bem, foi o Amigo mais próximo do Teixeira nesse percurso.
Terá querido o acaso que ambos tivessem percorrido o calvário da formação de Operações Especiais, em Lamego e dai saíram guerreiros
O Teixeira fazia as honras ao crachá, era garboso com uns laivos de natural vaidade.
Singela é a minha memória mais sedimentada, que consagra este camarada, e que agora evoco.

Um dia eu vi estes guerreiros, entusiasmados como putos que estivessem a trocar cromos; putos esquecidos das horas, homens esquecidos das vicissitudes da guerra e despicientes da lei última da vida, a verbalizarem, exclusivamente no tempo que viria depois do termo da comissão,  como cada um iria ter o que naquele cu de judas eles consideravam o melhor compromisso de automóvel competitivo, um Simca Rally2.
Cumpriram a esperança. Um dia de passagem por Águeda tive oportunidade de os encontrar numa roda de camaradas; e quase de saída, o privilégio de fazer uma curta viagem no carro do Teixeira. O palco, foi um troço da actual IC2 (direcção sul norte), no tempo um pouco antes da entrada na curva grande que antecede o desvio para Aguada de Cima, e a deixa:  “vamos fazer a próxima a 140” ... um must de elegância e controlo de condução…

Apenas, sem mais…
A todos os que partilham saudades do Teixeira, o meu abraço de solidariedade.
Azevedo

2013-09-15

M55 - Memórias da minha tropa

Tínhamos chegado ao Lucusse, havia poucos dias. O camuflado novo em folha do “maçarico”, ainda estava hirto de tanta goma, apresentando-se com as cores vivas, próprias do pouco uso e poucas lavagens.
Integrado num grupo composto pelos Pelotões de Reconhecimento e Sapadores da CCS e muitos militares dos “velhinhos” que fomos render, montados nas Berliets, partimos rumo a um destino desconhecido, mas que se sabia ser uma missão de reconhecimento da região.
Umas boas três horas de picada, findas as quais apeamos e munidos dos inseparáveis sacos com as rações de combate e restante equipamento, formamos uma fila indiana que serpenteava mata adentro.
Para quem ali tinha chegado há tão pouco tempo, logo despejado num cenário daqueles, escusado será dizer que, o medo se fazia notar, ao contrário do que reflectiam os rostos dos “velhinhos”.
Como cautelas e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém, a G3 ia municiada com bala na câmara, pró que desse e viesse, não fosse o diabo tecê-las.
E não é que aconteceu mesmo?
No segundo dia de caminhada, palmilhando no capim, ora por entre o arvoredo, ora atravessando enormes planícies alagadas, a determinada altura, ouviram-se disparos dos “velhinhos”, lá na frente, muitos disparos.
Atónitos, pensando que estávamos a ser atacados, de arma aperreada e todos os sentidos alerta, tentamos proteger-nos, mandando-nos imediatamente para o chão.
Valha-nos Deus, Virgem Maria - pensei ser o fim! Iria morrer ali mesmo? Mas não, logo se fez silêncio, um enorme silêncio e tudo acalmou.
Passaram palavra para trás, que não havia inimigo, mas tinham matado um boi cavalo. Calhou-me em má sorte poder ir ver o bicho...
Com o medo afastado e já cheio de coragem, armado em guerrilheiro, lá fui. O problema é que o raio do animal estava para além de uma linha de água que ali havia e se o queria ver, teria de a atravessar.
Assim, todo vestido e calçando as minhas botas novas de lona, não hesitei, meti-me àquela travessia com água até à cintura.
Acabei por não ver bicho nenhum! Não sei mesmo se alguém  o viu. Ainda hoje tenho sérias dúvidas se ele existiu mesmo ou seria uma patifaria, uma grande partida dos camaradas que se iam dali embora em breve, para nos testarem…
De qualquer forma, maldita hora aquela… A água da ribeira fez apertar as botas, que molhadas, fizeram com que ao caminhar, os pés se comprimissem de tal forma dentro delas, que ficaram numa ferida só, em carne viva…
O mesmo aconteceu a vários, pelo que a restante operação foi feita com grandes dificuldades.
Alberto Fontes
ex 1º Cabo Enfº da CCS

2013-09-09

2013-09-04

M53

M52 - Soldado A.M.V.

Conheci o soldado V. em circunstâncias peculiares.  Numa tarde solarenta de Mai72, calhou deslocar-me ao quartel de Gaia (ex-RAP2) e à passagem em frente à casa da guarda, o sargento informou-me que tinha sido presente e estava ali detido, um militar que seguiria para Angola, integrado numa das companhias operacionais do Batalhão.
A pedido, foi-me facultado  o aceso ao aposento em que se encontrava o prisioneiro. Deparou-se-me um homem magro, olhar escavado num rosto de pedra, marcado como só a vida noturna e desregrada consegue. Permanece sentado na borda do catre, o que não me preocupa já que se me figura que se se levantasse me ganhava em altura, para além do que o espaço é acanhado; responde à saudação de forma distante e volta a afivelar um olhar duro e desconfiado de animal acossado. Recuo um pouco, na direcção de uma pequena mesa, em que vou apoiar-me e ensaio um diálogo com perguntas de circunstância: se está bem, se tem dormido, se precisa de alguma coisa. Vai respondendo … de quando em quando deixava pairar uma réstea de confidência, uma verdade escondida ou sofrida. Concluo que o V. tinha pertencido  a uma espécie de quadrilha que operava na zona do grande Porto. Cometeu ilícitos vários que motivaram a perseguição e a detenção pela PSP. Presente a tribunal para julgamento e detectado a situação de desertor, passa para a alçada da policia militar e acaba ainda castigado com pena acessória de embarque para zona operacional, na R.M.A.
Tinha decorrido quase uma hora; saí com uma despedida singela, de um até breve.
Mas, muita água passou sob as pontes do Lungué Bungo antes de voltamos a cruzar caminhos
O V. estava integrado na 3540, e nas duas primeiras vezes que por lá passei não deu para o rever. Homem habituado a uma vida dita de marginal, com manifesta capacidade de liderança, não se adaptou ao regime disciplinar que lhe era imposto.
Não surprendeu os que conheciam alguns dos antecedentes do V. que, a breve trecho, estivesse envolvido em conflitos graves.
E também rapidamente foi transferido para a C.C.S.
Não me cabe escalpelizar motivos e justificações subjacentes, até porque não domino essa informação.
Certo é que para os padrões da CCS, o V., passou a ser o super operacional. Andava mais tempo com a G3, que sem ela; e garantiam que com bala na câmara. Também eram mais os dias (e noites) que passava no mato, que aqueles em que era visto no quartel. Isto com o beneplácito do capitão  AA, que não era pessoa para confrontos directos; neste particular, funcionava o laissez faire, laissez passer.
O código ético a que muitas das acções do V. se subordinavam, se bem que rudimentar,  não deixava de ser interessante. E, quando o respeitavam, ele retribuia em igual; e por esses mesmos, quando considerava necessário, assumia a defesa incondicional.
Recordo dois episódios
Decorria uma madrugada algo agitada, com o ultimar de uma coluna que ia lançar um bigrupo de catangueses, para os lados do Lunhamege. O Sol ainda tardava. Tinha acabado de limpar os vidros dos faróis e começava a acomodar-me ao volante da Berliet que seguiria na frente. Vejo com alguma surpresa surgir o Cap. AA que me vem dizer que V. estava autorizado para mais uma caçada e seguia no meu carro … e lá vem ele. com a G3 na esquerda, e o  cinturão regulamentar de través pelo peso dos carregadores; sauda e sobe para a caixa.
Coluna a rolar, faltavam cerca de 6 quilómetros para se atingir a segunda ponte (uma das referências na ordem de marcha), quando o pressinto atrás do meu banco e ouço a pedir confirmação de eu estar informado de que ele ia à caça; acrescenta que tencionava iniciar a batida a partir dali.
Não expresso qualquer reserva e começo a explicar-lhe que não devo estar de regresso, antes que decorridos 1h30m. Ele deveria estar atento aos dois sinais sonoros que por essa ocasião emitiria, com intervalos de 15 minutos, para estar próximo e se apresentar à boleia: o primeiro  à chegada e o segundo ao retomar a marcha para o quartel.
De facto a passagem de regresso aconteceu quase duas horas depois, e verificou-se o que era expectado: o V. não estava nem apareceu no termo dos quinze minutos subsequentes, que tinha estabelecido como limite; assim, motores a trabalhar, e retomamos os trilhos na areia.
Três noites decorridas, seriam cerca das 06h00m, estou de conversa junto à porta de armas, com a sentinela e o sargento da guarda, quando o primeiro alerta para a aproximação de desconhecido; pouco segundos decorridos é unânime  opinião de que vem lá o V.. Parece mais magro que o habitual, traz no rosto noites naturalmente  mal dormidas. Chega, saúda e  leva a mão ao cinto de onde retira uma das quatro galinhas do mato pendentes, que me oferece.
Não posso aceitar e afavelmente afirmo-lhe não apreciar carne por ser mais dura e o animal abatido, merece melhor destino, que era o da partilha com o pessoal da caserna; “amigos como dantes”, diz, já de partida.
O segundo episódio que recordo ocorreu no início do almoço, no refeitório dos praças, no Lucusse, porventura no último dia que aconteceu ali estar de oficial de dia.
O arroz não saiu a preceito e o pessoal começou num crescente de protesto contra a qualidade da refeição e a incompetência dos cozinheiros. Súbito o T. (soldado condutor) porventura  convencido de que lhe cabia ser o bobo de serviço e introduzir mais dinâmica  na reclamação, levanta-se, pega numa travessa e com um movimento amplo, arremessa o conteúdo em direcção ao teto. O ruído diminuiu significativamente, os mais próximos estão admirados, ora olhando para o teto, onde continua colado o arroz, ora fitando-me.
Não posso facilitar, entre despoletar a aplicação das regras disciplinares, o que não me agrada muito e devolvê-lo à posição de sentado com um valente cachaço, opto pela segunda; vai ser de esquerda cheia, começo a avançar, quando vejo o  V. levantar-se e dirige num vozeirão ao T: “parece que queres ir lamber o arroz lá para cima…” . Silêncio sepulcral no refeitório.  O T. senta-se, reduzido a nada; passo pelo V. e toco-lhe no ombro, também para o motivar a sentar-se; dois passos depois, fito-o por cima do ombro e  dirijo-lhe um impercetivel aceno com a cabeça. Pareceu-me ter sorrido.  
Azevedo


2013-09-02

2013-09-01

2013-08-26

M49 - Somos menos

Faleceu em 25Agt2013 o nosso camarada Alexandrino Coelho de Almeida (C.Art. 3539)
Um amigo que recordaremos com eterna estima e gratidão.
Descansa em paz. Até sempre
.

2013-07-23

M48 - Casa das Palancas
Despertei para a cultura africana com a leitura de algumas obras de Henrique Galvão(1), militar que esteve destacado em Angola (cerca de 1925), o que lhe possibilitou o contacto com várias tribos e o posterior e preciso relato, das suas práticas.
Por um  golpe do destino, diriam, tive oportunidade de percorrer algumas destas terras e de observar as suas gentes.  Recuo no tempo (Jun72) … encontro-me a bordo do Boeing dos TAM que transporta CCS e a pagar pela forte variação de pressão, provocada por uma brutal descida em direcção ao aeroporto de Luanda..
Corro a cortina, olho pela janela e tenho a fraca sensação de que a terra sobe, como se fora uma nuvem de terra e pó vermelho sangue.
Esta visão da terra avermelhada de Angola iria acompanhar-nos, em cada dia, dos vinte e sete meses seguintes. Prevalece desde a partida de Luanda, para lá das  janelas dos autocarros que nos levaram a Nova Lisboa, ou depois, das do comboio em que  ensandecemos, a caminho do  Luso; para a última etapa, dessa longa travessia de Angola, estava-nos  reservada a indignidade da caixa de carga de viaturas pesadas civis, a rolar embrulhadas numa nuvem calda e extensa de pó oxidado, de onde só saimos  para sermos  martelados pelo Sol e no final descarregados no aquartelamento, em Lucusse.
Nos dias seguintes, cansados e exasperados, começamos a tomar consciência do isolamento e iniquidade a que estavamos remetidos;
Dos dois aldeamentos confinantes, quando o vento estava de feição vinha o cheiro da miséria e do chão, dessa terra vermelha, que breve se constataria, também sobe pelas palhotas.
As rotinas a que todos se entregaram, ajudaram a ultrapassar a fase de resignação do luto de distância, que precisavamos ultrapassar. Estavamos todos num mesmo barco, encalhado em mar chão, onde aos poucos as recordações se esboroavam e muitas das ditas referências de normalidade se afundavam.
Porém, porque eramos jovens e as caracteristicas do nosso teatro de operações o facilitavam, começamos a perceber este território de que nos apoderavamos, essa natureza em bruto, em que qualquer dos referenciais de espaço e de  tempo, possuiam dimensões a que não estavamos habituados.
E adaptavamo-nos, se bem que, quase sempre, subjugados por um calor viscoso e obrigados a reagir ao avanço subterraneo de um mal estar vagaroso e corrosivo.
Aos poucos cada um foi fazendo o percurso que lhe saia em sorte.
O pessoal do meu sub-agrupamento (mecânicos e condutores), cumpria.
Confiei na capacidade de discernimento de todos, para levar a bom termos as tarefas que lhe cabiam, sem ultrapassar limites temporais e de qualidade admissiveis e apreciei o clima de respeito pelas idiossincrasias de cada um e do grupo, que rapidamente se estabeleceu.
A casa quase arrumada, permiti-me avançar na perseguição de objectivos pessoais, que começaram por ser, evoluir como artífice de mecânica auto e melhorar a técnica de condução de veículos pesados.
O tempo ia passando.
Luso, a vila mais próxima, distava cerca de 130 km. Só decorridos quatro meses após o aquartelamento, calhou reve-la. Tal regresso implicou uma espécie de choque civilizacional: saiamos de um universo fechado em que todos se conheciam e mergulhavamos num outro em que não eramos reconhecidos e a cortesia do acolhimento escasseava ou em que não era dispiciente a sensação de que estavamos a mais.
Aquela não era a minha praia …  pertencia já a outra guerra. Os civis, a sociedade com que tinha de interagir, descobri-o eram os vizinhos no Lucusse. Era naquele terreno que tinha de se sondar a agreste realidade, e confrontá-la com o assimilado dos escritos lidos e relidos, anos antes.
Opção feita…
No dia seguinte iniciei caminhadas irregulares de exploração, através dos aldeamentos
Com o tempo ganhei a confiança de alguns dos residentes, com que depois me ia de quando em vez perdendo em conversas prolongadas.
E uma noite africana de Lua baixa, fui levado, para assistir a parte de um cerimonial da circuncisão, a festa de iniciação dos adolescentes africanos. Voltei dias depois para agradecer e também, com algum pesar, despedir-me destas gentes; a rendição da unidade, ocorreria dias depois.
Rumamos ao Luquembo, povoação em que já existia uma pequena comunidade de brancos. Por opção mantive o anterior modus operandis, de conversa com os indigenas, que mais das vezes ora era um deixar falar, ora um sereno aguardar,entre nuvens de fumo  na tentativa de encontrar ou comprender formas de estar e de pensar dos meus interlocutores .
Dois meses decorridos, surgiu uma oportunidade singular: num fim de tarde cruzo-me com um  já velho conhecido da sanzala, que me desafia com a perspectiva de eu poder ficar com a casa que ele ia deixar vaga, por motivo de ausência  para Malange.
Não perdi a oportunidade. Assim, com a passagem de mãos de 220 angolares ele assegurou o fundo de maneio necessário para a deslocação, que afinal já dizia ser prolongada a Luanda, e tornei‑me proprietário, do palacete de adobe e colmo que ele edificara na sanzala.
A rentabilizaçãocdo investimento, não foi dificil. Foram muitas a noites de animação e festa, com participação do jet set local; mas também em algumas outras, a farra foi substituida por horas de amena cavaqueira, fumo e bar aberto.
Foi na preparação de uma das primeiras destas reuniões, que teve lugar um evento que recordo como de excepcional. Estava combinada uma conversa com 2 dos mwatas da sanzala. Tinha chegado muito cedo porque queria concluir um desenho que iniciara na véspera, uma espécie de fresco, destinado a “encher” uma das paredes interiores do palacete que, recentemente, tinha pintado de branco.
Noite calda e quente, um candeeiro a espalhar sombras, que ora oscilavam nas paredes, ora se perdiam pela porta que permanecia aberta; chegados, os dois mwatas convidados saudaram e, ao meu sinal, entraram  e, sem despegar olhar da pintura, sentaram-se nas duas cadeiras que teriam imaginado, lhes estavam destinado.
Minutos depois, concluido o trabalho  e ainda com o pincel na mão afastei-me para uma melhor visão do conjunto. Ao invés, os eméritos caçadores ergueram-se, e ainda ligeiramente curvados, avançaram de rosto algo tenso e um agitar de mãos que temi estragasse os traços.

Desenho repescado da memória

Eles mesmo, já me tinham falado das palancas negras, que sabiam estavam confinadas a uma reserva próxima, mas diziam, há muito, muito tempo que ninguém as avistava ou caçava.
Vivida a surpresa, ficou patente quão grande era o espanto e genuino o contentamento destes dois velhos.
E para mim novo o registo da reacção: os mwatas, eram sempre muito circunspectos, mantinham um grau de compostura, que não lhes vira ser afectado por fumo álcool ou tema de conversa, por controversa que este fosse.
Mesmo que pusesse em causa ideias ancestrais, sempre lhes observei serenidade e regular capacidade de argumentação. Porém a tradição prevalecia em absoluto.
Por exemplo, quando se abordava o ordenamento social de tarefas em função do género, eram irredutiveis: os homens estariam destinados ao exercício de actividades ditas mais importantes, como a caça, o parlapiau e a  cachaça, enquanto que as mulheres na proporção do poder ou da dita riqueza daqueles, ao passarem a regime marital, ficavam responsáveis pelo cultivo das lavras, e tratamento dos animais, parir e cuidar dos filhos.
Paradigmática esta historia que me contaram e que é replicada no livro Terras do Feitiço.
Uma jovem pubera tinha casado com homem bem mais velho e ambos passado a viver na sanzala deste. Poucos meses decorridos a rapariga foi à água. Calhou que à mesma linha de água tinha acorrido um seu conhecido residente na sanzala que ela deixara para trás. Perderam-se de conversa a dar as novidades. Quando a dado passo ela o viu preparar tabaco para cachimbar no mutopa, disse-lhe que também lhe apetecia uma pitada. Não perdeu tempo, este velho conhecido, em dizer que há dias andava fora da sanzala, sem mulher e que também a ele lhe apetecia … o corpo da rapariga.
E sem grandes delongas trocaram os favores que desejavam, seguindo depois cada um o seu caminho. Quando, dias depois, o velho soube o que se passara, resolveu a coisa de forma expedita: tendo a rapariga confirmado a aventura foi ter com o "abusador" que também não desmentiu; sem rancor, reuniram os dois homens, para deliberar sobre uma das duas soluções que eram reconhecidas como válidas: a) ou o velho desistia por completo da posse da rapariga, recebendo em troca o equivalente ao total do alembamento, ou b) recebia apenas uma indemnização a estipular, como homem lesado nos seus direitos e propriedade.
O velho considerou a sua provecta idade, que pelo contrário a rapariga era novita, reflectiu e optou pela indemnização, que fixou em duas cabras e duas cabaças de marufo; o “abusador” aceitou o valor proposto, fazendo questão de ressalvar que era necessário descontar o valor do tabaco que cedera à rapariga.
E amigos como dantes …
Por estas e outras parecidas, o misisonário residente, simpático ansião holandês, de que não me ocorre o nome, bem tentava anunciar a força dos sacramentos, o ideal de casamento monogâmico e outros, mas parecia que o rebanho, neste particular, aspirava mais  aos ensinamentos do Corão.
(1) -  Henrique Galvão tem obra escrita sobre a vida nas colónias africanas, a sua antropologia e zoologia, designadamente Outras Terras e Outras Gentes, A Ronda de África , Antropófagos e Terras do Feitiço 
Azevedo

2013-07-06

M47 - Tempo de Tropa

O 8 de Junho passado foi um dia de encontros e reencontros
De entre os saudosos de 39 anos, encontrei um que tive a grata surpresa de saber dedicado às artes da coisa escrita e que teve a amabilidade de me oferecer um dos seus titulos, que rececionado  há algumas horas, li de um folego.
São cerca e 100 páginas de memórias de coisas, circunstâncias e pessoas, que fizeram parte da  envolvente do tempo africano; uma narrativa na primeira pessoa, que testemunha, opina e critica.

  
  
O ex-alferes Gil Abreu (C.Art.3540), entre o tempo que a capa acima referencia e o do ar jubilado que abaixo se regista, tem obra publicada, a saber:



2013-06-13

M46 - Cap Arnaldo Luz

Homem de altura meã, não muito gordo, no rosto um ar de bonomia; mas, sempre me pareceu que  era ele que impunha a lei na área administrativa da CCS.  Foi a figura estimada  do mais velho do grupo, que admiravamos pelo comportamento cortês, pelo  saber que apaziguava a cólera de terceiros e pela sempre disponibilidade e abertura  para uma troca de impressões ou para um conselho aos que por bem se aproximavam. É o para sempre 1º Luz.
Hoje por mérito no posto de Capitão, impossibilitado de estar presente ,teve a amabilidade de enviar versos alusivos, dedicados a todos os Grifos e respectivos familiares, presentes ausentes e ainda os que já partiram.
Publica-se como forma primeira de levar ao conhecimento de todos.
Retribui-se o abraço da dedicatória e fazemos votos para rápida recuperação do Capitão Luz 

Azevedo

2013-06-10

M45 - Convívio do BART 3881, de 2013

Pelo 2º ano consecutivo, elementos do B.Art. 3881 tiveram a reunião anual na unidade mobilizadora, o agora R.A. 5
Muitos foram os camaradas do Batalhão que puderam responder à chamada. Mais um ano, mais fortes, com o cabelo em fuga e marcado pelo tempo, a respiração mais profunda, na passagem do alto da rampa da porta de armas, ponto também, a partir de onde começam a tentar descortinar por entre os presentes, os camaradas da aventura africana que, na memória permanecem mais próximos, para primeiro saudar, ou ansiosos, vão passar a aguardar que cheguem, enquanto que, como sempre generosos, repartem cumprimentos e abraços por todos os restantes. E estes eram bem mais dos que tem sido costume porque, para esta reunião de 8 de Junho, foram convidados todos os elementos do batalhão.
Congratulo-me com o resultado maior: reencontro com camaradas que não via há 38 anos e enxergar um pouco mais do sentir de Vinicius de Moraes quando escreveu

Soneto do amigo. 


Enfim, depois de tanto erro passado 
Tantas retaliações, tanto perigo 
Eis que ressurge noutro o velho amigo 
Nunca perdido, sempre reencontrado.

É bom sentá-lo novamente ao lado 

Com olhos que contêm o olhar antigo 
Sempre comigo um pouco atribulado 
E como sempre singular comigo.

Um bicho igual a mim, simples e humano  

Sabendo se mover e comover 
E a disfarçar com o meu próprio engano.

O amigo: um ser que a vida não explica

Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica...

Registos do Convívio de 8 de junho 2013:

1. Fotografias (clicar)

2. Video


Azevedo