2012-07-31

M36 - O Telegrama
Chegamos a uma altura em que tinhamos “desligado” da guerra; ou era como se não existisse, para confirmar no terreno uma das máximas dos próceres do regime.
Doia-me por isso; e mais, por força desse desligar, viriamos a sofrer por  morte, sangue e medo, já depois do 25 de Abril, com as baixas na emboscada feita a camaradas da 3540.   
Agarravamos-nos sem descortinar, a uma loucura construida, para esquecimento do tempo que tardava. Prolongavamos os dias pelas noites, para que no limiar do esgotamento, a ansiedade esmorecesse. Contrariando o poeta, elevamos a loucura  a coisa  sadia; porque lúcidos, a imaginação teria de ser atenazada, sem o que nos levaria para o sofrimento do prisioneiro.
Os episódios sucediam-se no encadeado dos dias, e nestes, na volta dos ponteiros do relógio.

Luquembo …
Era mais um dia de calor viscoso, de um verão africano e obeso.
Estou a atravessar campo aberto, na passada rápida possivel, de fuga para uma sombra e cruzo-me com o furriel MCS, que em geito de saudação exclama: “Nada para o puto?”
O calor que  embota o espirito, retarda a reflexão sobre o sentido da mensagem; dois passos decorrridos, vislumbro um potencial convite
(será um sugestão para uma Nocal?)
Mas a sede por si só, não sendo de morte, não justifica  a alteração de rota; um passo mais e, do subconsciente do desejado, arranco o que vai revelar-se ser a aposta certa: “férias?” e ele replica: “YES!”
Está validado o refazer dos trajectos; e já chegamos … estamos a pedir duas bem frescas … tocamos as garrafas, num brinde mudo e saboreia-se o silência reconfortante do primeiro trago. Depois …
(este felizardo vai pela segunda vez de férias ao puto … fosse eu agora de férias e não voltava … deixa cá ver, rodamos há 4 meses  … já tinhamos do anterior, no que interessa ao caso, outros quatro … ele arranca já amanhã  … ok! é isso!... )
“Então faz-me o favor de na passagem da segunda  para a terceira semana de férias, colocares este telegrama dirigido ao alf T”, digo, enquanto que num papel, que descortinei num dos bolsos, junto palavras , em  frases entrecortadas por stops como era uso e costume à época. Dobrei o projecto do potencial telegrama, depois, no exterior relevei a data limite para expedição e com ar grave depositei-o nas mãos do MCS que generosa e cortezmente guardou sem ler.
Acabaram-se as loiras e saudamos: “adeus até ao meu regresso” contra “boas férias”
O episódio passou-me rapidamente para a memória arquivo das coisas imaginadas, loucas e construidas; amanhã, que não mesmo hoje, há mais e a que já foi, está esquecida.
Creio que pouco tempo depois de chegar ao Luquembo terei deixado de ser o homem pressionado, para enveredar pelo irónico; seria talvez uma das possibilidades  de  assegurar alguma razoabilidade de saude mental. A ironia é um estado em que as pessoas, de certo modo,  não se conseguem levar a sério, já porque têm consciência de que se descrevem a si próprias, estão sujeitas a mudança, têm memória das suas  contingência e fragilidade; um saber que não se sabe, uma libertação da liberdade.
Isto e muito mais, esteve na origem de ter adquirido uma “moradia“ no quimbo a norte da messes oficiais, tendo lá promovido convivios de toda a espécie e a oportunidade de travar as conversas mais delirantes e mais profundas desses dias.
Mas voltemos ao que viemos.        
No referencial tempo, estamos no décimo dia após ter estabelecido o pacto do telegrama com o MSC;  acabo de tomar o pequeno almoço e saio da messe para iniciar uma caminhada  de cerca de 5 minutos que me vai levar ao quartel. O que era promessa na alvorada, começa a confirmar-se , vem aí mais um dia de calor sofrido.
Ainda umas dezenas de passos a mais dentro do quartel e atinjo a zona da oficina auto e, como para mim digo de há uns tempos a esta parte, os galões permanecem  descansados; os mecânicos e os condutores cresceram como homens, não se perfilam com questões ou conversas que reflitam mal estar de maior e dão ares de viverem com alguma descontração, facto que para alguns disfarça de forma satisfatória as ansiedades ou angústias de que sofrem. E as tarefas são cumpridas dentro do prazo limite e de forma correta
Mais uns minutos de troca de impressões com o Mário, o amigo para sempre, e o grande o responsável por esta calma e sossego oficinal.
Fico mais um pouco, na passagem pelo “escritório” para reler umas anotações feitas de véspera num livro, arrumar uns papeis e escrever para casa.
 A manhã já vai longa  e não há vontade para continuar sentado; arranco para uma deambulação ou seja um passeio feito de lentidão, preferencialmente a perseguir zonas de sombra ... continuo e súbito, começo a dar conta da  cantar sincopado do códiog fonético internacional:  viktor-alfa-mónaco-oscar-sierra-lima-alfa … se de facto tivesse sido este cantar, estaria em sintonia com o que pensei.
(vamos lá … nem mais,  era o que andava a procurar)
Infleti para o local do cantante; um dos locais que propiciava a recolha de boas e actualizadas informações.
Entro sem bater, ou duvidar que sou bem vindo, que a porta está sempre aberta e o pessoal é de uma afabilidade extrema. Saudo todos os presentes que retribuiem, para rápido retomarem os afazeres com o que vem e vai pelo éter.
Poucos minutos decorridos chega o benjamim do grupo  com  protocolo das mensagens que terá acabado de entregar e quase em simultaneo o alf T, que com um sorriso aberto para todos, sauda e rápido apreende que está tudo dentro dos parametros de normalidade.
Mais uma pequena troca de impressões com o pessoal que está de serviço e retomamos uma conversa que tinhamos iniciado ao pequeno almoço.
Mas eis que começa a espraiar-se uma onda de cochichos e de risadas curtas; interrompemos para escutar uma mensagem, que está a ser retransmitida às claras, pelas TRMS do quartel de Malange:
“ … vou repetir, MUITOS PARABÉNS STOP MÃE E GÉMEOS DE PERFEITA SAÚDE”
(onde é que já ouvi isto?)
O alf T, súbito agitado e consciente do sentido da mensagem, arma um sorriso bonacheirão e pergunta:” ... e quem é o sortudo?”
(agora é que vão ser elas!)
Alguém exclama,  por entre uma risada “É você alferes”
Explodem risos desbragados e genuinos e uma expontânea salva de palmas, que da parte de alguns . termina com umas palmadas amigáveis nas costas do visado. O alf. T está suspenso, o sorriso anteriormente de bonomia, quebrou, como se ele já tivesse começado a deitar contas à vida. Mas as palmadas nas costas, de vigorosas,  ajudam-no  a recompor-se; o rosto reassume o ar rosado e saudável que lhe é habitual e começa a agradecer o mar de felicitações
Da minha parte, acompamho todos os votos dos sitiantes, como só um irresponsável senior conseguriia
Com o ponteiro dos relógio está sobre as 12 horas e convoco o camarada “sortudo” para um pré pranteal; ainda estou em fase de adaptação para o que deve procurar-se  que aconteça a seguir. Vimos para o exterior,  no instante em que está a passar uma viatura, sinalizo ao condutor e forço uma boleia até à messe, que o sol vai alto e queima.
Chegados, divulgo a “boa nova” e o alf T agora já quase num registo de eufórico, dá instruções ao Martins, para que abra uma conta a fim de carregar os consumos dos camaradas que vão solidarizar-se com a noticia
O último a chegar é o Comandante, que vem à boleia, no jeep do cap AA
Cumprimenta e como é hábito chega-se ao balcão, onde já o aguarda o whisky da ordem; antes do primeiro golo, já está a ser esclarecido sobre o motivo do bar aberto. Molha a palavra, avança dois passos, na direcção do alf T, dá os parabéns e brinda.
O cap AA, habitualmente dado ao remanso, desta vez fez uma leitura muito rápida das circunstncias e lesto no seu passo miudinho, avança para quarto, de onde regressa com três garrafas de espumante, que, indubitavelmente felicissimo, deposita  no balcão e, alto e bom som, dá parabéns especias e prossegue esclarecendo que as garrafas são para brindar no final do almoço.
O Alf. T desmultiplica-se em agradecimentos e continua na conversa com o Cmdt; acabam de juntar-se a eles o cap AA e o maj R, quando de relance ouço: ”então o nosso alf. T tem interessem em antecipar as suas férias?”
(oh!, oh!  isto está a ficar um bocado enviezado, com esta boca do Cmdt)
“Sim, sim, se o Sr. Cmdt estiver de acordo!”
(Tenho de tratar muito rapidamente da passagem ao plano B! )
Na primeira oportunidade crio um espaço junto do Cmdt e reporto-lhe a génese de todo o acontecimento  e acrescento que considerava vantajoso que ele não entrasse no cenário, designadamente com a  insistência na antecipação de férias, e que, se necessário, estava disponivel para retratar-me como o mau da fita.
(agora é que vai ser de partir a loiça … já da última vez, me tinha recomendado para ter cautela)
Mas o homem parece estar manifestamente bem no meu plano A. Olha em redor, avalia a animação de cada um e de todos
(está a gostar … este sorriso de ironia fina …  olha para o copo  … vai pedir outro wishky)
vai ao balcão, pousa o copo  e com um movimento quase impercetivel sinaliza que quer mais gelo; regressa , fita-me com o que designo de olhar atravessado nº1, inclina-se ligeiramente, e  de forma reservada diz: “OK!, mas primeiro vamos dar cabo das garrafas do cap AA”.
Assim se cumpriu …    
azevedo

2012-07-30

M35 - O RANGER

Lamego, 2.º semestre de 1971

O Centro de Instrução de Operações Especiais (CIOE), foi criado no ano de 1960, com o objetivo de:
-        Instruir quadros do exército nas várias modalidades de operações especiais;
-        Realizar estágios de subunidades, tendo em vista aperfeiçoar a sua atuação numa ou mais modalidades destas operações;
-        Levar a efeito estudos que, de qualquer modo, possam contribuir para melhorar a eficiência das Forças Armadas, no que diz respeito à sua atuação em operações especiais designadamente nas de maior interesse para a defesa do território nacional.
Ficou aquartelado na cidade de Lamego, no antigo Convento de Santa Cruz.
Durante a guerra colonial mantem-se o curso de operações especiais: até 1968, frequentado por aspirantes e cabos milicianos (depois promovidos a alferes e a furriéis milicianos), como especialidade complementar; a partir do início de 1968, por instruendos do COM e do CSM, como especialidade base, primeiramente durante o 2º ciclo, depois nos dois ciclos.
A instrução privilegiou o conhecimento de técnicas de infiltração profunda, orientação, ocultação e sobrevivência, constando dos programas a preparação psicológica, a gestão de esforço fisico (capacidade de resistência a esforços violentos em condições adversas, fadiga, sobressalto, etc.), o  manuseamento de explosivos, a travessia de cursos de água, o planeamento tático, a gestão de patrulhas de longo alcance, emboscadas, golpes de mão.
Ou seja, no que interessava, criaram-se especialistas em contra-guerrilha, em ação psicológica sobre as populações e em operações de reconhecimento de vários locais estratégicos, podendo posteriormente realizar-se ou não ações de guerra.
O CIOE foi extinto em 31 julho de 1975.
Em Fevereiro de 1981 foi reativado, recebendo então complementarmente a missão de preparar forças de Operações Especiais, de grande grau prontidão, autonomia e intervenção.
Em Julho de 2006 o CIOE passou a designar-se Centro de Tropas de Operações Especiais (CTOE) e a integrar a Brigada de Reacção Rápida.
O petit nom de RANGER decorre do facto de em 1962 o Estado Maior do Exército (EME), ter nomeado o Cap. Art. Bacelar Begonha para frequentar, na América do Norte, o Curso “Ranger”, com o fim de promover em Portugal um curso idêntico, naturalmente adaptado aos teatros de operações  africanos; este curso vai ser dado no CIOE.
Depois do laboratório de Argélia, começava a ser dada preferencia à experiência dos miltares no Vietname: uma instrução/formação militar de operações especiais, tipo ranger (muito provavelmente a formação de Ranger Training, de Fort Benning, na Georgia). Daqui deriva a designação de Ranger que passam a assumir como sua, os militares que conquistam a placa de especialista de Operações Especiais.
Funcionou até ao fim da Guerra Colonial, ficando conhecido pelo nome de “Curso dos Rangers”.

Um dia da vida instrutiva do “Ranger”:
O instruendo não tem hora certa para descansar; é forçado a levantar-se a qualquer hora da noite: às vinte e duas, à meia-noite, às duas, às quatro ou às seis da manhã, tem de estar sempre disponível.Não há clarim para tocar a alvorada; o som metálico é sempre, mas sempre, substituído pelo estrondo de granadas ofensivas que rebentam à frente das casernas, passados dois minutos tem de estar na parada, formado com o seu grupo de combate, geralmente em camisola branca, calça de camuflado e bota a condizer; de seguida são feitas suspensões nas barras fixas, que estão mais à frente na parada estrategicamente montadas.
Este exercício tem a finalidade de despertar/estimular os formandos e de fazer alongamentos musculares (esperguiçar); é o início da preparação física diária. De seguida vai tomar o pequeno-almoço, este é livre e sem formalismos, com a alimentação sempre à descrição: pão, fiambre, queijo, manteiga, leite e café, e cada qual come o que quer e bebe do que mais gosta. A alimentação é muito boa, em quantidade sempre sobrante, e muito variada (diz-se que a Nato ajuda a pagar a nossa alimentação). O problema é que há muitas refeições que são passadas em branco; quando saímos em patrulha é certo e sabido, não levamos quase nada para comer, levamos uma sandes, uma peça de fruta e nada mais, depois temos de nos desenrascar. A população civil é calorosa, afável e solidária, dá tudo o que tem: enormes pães de centeio, que parecem rodas de carros, chouriços, queijo, presunto, vinho e aguardente. Uma vez, na Régua, pelas sete horas da manhã, um padeiro que andava a distribuir o pão pelos cafés que por essa altura começavam a abrir, deu um saco dos da farinha cheio de carcaças para os homens que iam comigo; foram logo devoradas ali, assim sem mais nada, depois de uma noite intensa de exercícios nas margens do rio Douro. Nunca soube se este padeiro recebeu algum dinheiro pelo pão, mas valha a verdade era hábito o comandante mandar pagar todos os danos causados pelos instruendos, designadamente trigo ou centeio pisados, culturas hortícolas danificadas. Não é permitido ao instruendo levar dinheiro para as patrulhas, faz parte do conceito permanente  de sobrevivência pura. Comi muito pão dado pelos aldeões da zona, castanhas que apanhava do chão debaixo dos castanheiros, restos de fruta que ficavam penduradas nas árvores depois da apanha (estamos no fim do outono).
As refeições são tomadas no único refeitório que temos; o comandante, os oficiais, os sargentos, e os instruendos, comem todos aqui. Há mesas pequenas para oito os instruendos e uma grande mesa – presidencial – no extremo poente do refeitório; é uma mesa de oito por um metros, onde se sentam o comandante, os oficiais e os sargentos, bem como o instruendo de dia que tem um lugar cativo.
Quando algum instruendo faz anos, há sempre um enorme bolo oferecido pela companhia, e que é colocado sobre a mesa presidencial, tendo o aniversariante de o partir e distribuir por todos os presentes, depois de se cantarem os parabéns.
Temos uma formação muito objetiva, com muitos tipos de armas, incluindo as do inimigo, todo o tipo de materiais de guerra e equipamentos militares. Os instruendos têm de saber desmontar e montar a sua G3, com os olhos vendados. A montagem e desmontagem de armadilhas ocupam também muito do nosso tempo. Aulas práticas, são dadas num terrapleno em que só podem estar dois formandos de cada vez e adjacente a este há uma parede vertical de proteção com cerca de um metro de altura. Antes do início desta formação é feito um aviso solene de que é para aí que se salta quando alguma coisa corre mal.
Tive conhecimento de que num dos cursos seguintes ao meu, o nosso instrutor de minas e armadilhas – um alferes da Academia Militar - tinha morrido a tentar safar um dos instruendos numa destas aulas.
Toda a nossa formação assenta numa responsabilização e formação muito elevada para a guerra, aqui não há lavagem ao cérebro, trata-se sim de testar e ensinar os limites do corpo e da mente humana. Nos fins-de-semana de ida a casa, se alguma coisa correr mal ou formos apanhados pela Polícia Militar (PM), ou por qualquer graduado, temos de imediato ou logo que chegamos ao destacamento, de apresentar um relatório circunstanciado, que o comandante mais tarde vai comparar com o auto da participação, estando o instruendo sempre presente; se tudo estiver conforme, o auto de participação é sempre rasgada pelo comandante e segue para o cesto dos papéis.
Nunca sabemos quando vamos dormir, aqui tudo é mudança e não há lógica temporal. Nunca sabemos quando vamos de fim-de-semana, pode ser à quarta-feira ou ao sábado, para estarmos no domingo à noite no destacamento. Pode não haver fins-de-semana seguidos para gozar. Podemos ir à cidade de Lamego, sair e entrar à civil, isto apenas nos fins-de-semana livres; há viaturas com hora sempre marcada para nos levar e trazer.
Lamego é uma cidade cativante mas pacata: tem a sede do CIOE, a Messe dos Oficiais e dos Sargentos, uma catedral com o seu museu adjacente, que eu visitei, onde há tapeçarias e quadros em madeira de arte sacra muito antigas, nomeadamente pela mão de Grão Vasco, muitas igrejas, o santuário de Nossa Senhora dos Remédios, que é uma pérola da arquitetura barroca, estatuária granítica sublime, um vetusto castelo, um tribunal, várias escolas e entre elas um liceu, bancos, correios, um cinema onde as senhoras não se inibem de levar cobertores para se agasalharem nas noites frias de inverno,  um bom café – O Café Central – com um mezanino mais elevado, de  onde os militares miram as meninas sentadas cá em baixo, um lar de raparigas pobres que os militares rondam, sedentos de esperanças, uma central de autocarros que esgotamos nos fins de semana em que estamos livres, um comércio antigo mas muito personalizado. Há ainda bonitos e muito bem tratados jardins públicos.
O curso é muito personalizado, sempre virado para o individuo, há um esforço de criação de grandes especialistas que depois serão integrados em companhias operacionais,
O plano de curso tem diversas provas, sendo as mais difíceis ou para alguns as mais temidas:
– O Fantasma;
– O Calvário;
– Prisioneiros de Guerra;
- A Dureza 11;
- As 24 horas de Lamego.

Breve descrição do que foram as principais provas:
– Fantasma:
Esta é uma prova fácil, mas requer muito controlo emocional, durante todo o percurso, de cerca de oito quilómetros.
A noite não tem luar, lá fora a escuridão é quase total, e até as luzes da cidade de Lamego morrem à míngua. Todos os instruendos estão sentados no refeitório, a aguardar serem chamados. De cinco em cinco minutos sai um militar, somos cronometrados como se fossemos fazer uma prova de atletismo. Quando saímos, é-nos entregue um papel, com instruções para nos dirigirmos à porta de armas, que dista cerca de duas centenas de metros do local onde estamos. À porta de armas espera-nos um instrutor que nos informa que temos de seguir pela estrada que dá acesso à cidade. Passados uns dois quilómetros, mais ou menos em frente das Caves da Raposeira, salta-nos à frente outro instrutor. Obriga-nos a entrar numa conduta de águas pluviais que atravessa sob a estrada, e cujo chão está repleto de tripas e de restos de animais que trouxeram de um qualquer matadouro. Temos de o percorrer a rastejar, sobre esta imundície, de onde emana um cheiro pestilento e nauseabundo. São oito ou nove metros repugnantes e asfixiantes. Já à saida, o mesmo instrutor informa-nos que temos de continuar a descer a estrada até à cidade. Lá sigo em corrida acelerada, que o declive da estrada ajuda. Logo à entrada da cidade surge um terceiro instrutor que me encaminha para o cemitério. Passado uma centena de metros chego ao portão que está encerrado, mas logo surge um outro instrutor que determina que entre por escalada e que siga sempre em frente, em passo de corrida até ao portão oposto, que também é para galgar, virar à direita e sempre em frente até destacamento.
Reinicio a minha prova, subir, descer, correr … e surge-me pela frente um fantasma de carne e osso com um cobertor branco enfiado na cabeça, como se fora um poncho, finto-o a correr; penso ter-me livrado do dissabor, mas não, logo à frente tropeço numa corda esticada que atravessa a alameda de lado a lado, caio, e a arma que ia às costas faz um barulho tremendo, de acordar os mortos. Sou agarrado pelos pés e pelos braços por alguns fantasmas que surgem do nada, para me arrastarem e depositarem em cima de uma campa de pedra que está tão gelada como a noite. Fico ali deitado uns cinco a dez minutos, em que sistematicamente, ora perguntam ora afirmam que tenho medo; digo que não, insistindo sempre que tenho muito frio, enquanto que tento resistir ao crescer de vómitos involuntários originado pelo cheiro nauseabundo que já se entranhou na roupa, passou à pele.
Insistem e mantenho-me firme, enquanto ouço outros camaradas em corrida, a tropeçar com grandes estardalhaços; finalmente deixam-me retomar a prova, reinicio a corrida mas agora com renovadas cautelas.
Pouco depois, da escuridão da noite surgem duas luvas brancas esvoaçantes que me tentam atingir, lá me consigo esquivar, corro para o segundo portão, subo-o, viro à direita e sigo para o quartel, onde termino a prova cronometrada. No outro dia soube que o standart da nossa estadia no cemitério passava pela paragem sobre algumas campas ou … pela entrada e permanência dentro de um jazigo tipo capela. A porta deste era fechada à chave, logo que o instruendo entrava; quando os instrutores não ouviam os gritos dos vivos-mortos, duas interpretações eram permitidas: ou o instruendo era um valente e estava calado ou … tinha desmaiado. O tempo que gastei e a classificação que tive, nunca chegaram ao meu conhecimento.
Esta é a essência da Prova Fantasma.
Nunca me pareceu justificável esta profanação do cemitério, nem o direito que assiste ao comando militar que o permite, tão pouco conheço a prática actual; certo que ao tempo o poder civil, militar e da igreja andavam de mãos dadas.           

– O Calvário:
É uma prova diurna. Há alguns tipos de equipamentos que têm de ser transportados à mão, entre dois locais distanciados de oito a dez quilómetros.
O equipamento, a sortear pelos instruendos, tem um peso unitário da ordem dos 20 kg e compreende bolas grandes (talvez cheias com terra),  rolos de arame farpado e  cruzes latinas em madeira, com cerca de três metros. A mim calha-me um rolo de arame farpado. Lá começa a prova: tiro a camisa, enrolo-a e coloco-a em cima do ombro a fazer de almofada, peço a um camarada para me ajudar a colocar o rolo de arame farpado às costas e lá sigo.
Nas descidas atiro o rolo de arame ao chão e vou-o guiando conforme posso, recorrendo, no possivel, à técnica do arco com roda da minha infância.
Despois segue-se a alternância com o rolo às costas e o atirar ao chão para rolar, determinada pelo declive do terreno até que, exausto e  muito dorido, ultrapasso a linha de chegada
Pior para os camaradas que têm de transportar as bolas: devagar e desageitadamente no plano e nas subidas, tais que mulheres muito grávidas, e desesperados nas descidas em que as bolas são rainhas de velocidade, que eles por desistir de controlar.
Os homens das cruzes serão os mais penalizados no arrastar das peças; a partir de metade do percurso, assemelham-se a senhores dos paços do alcatrão..
Chegámos ao local previsto para a concentração, cada qual com a sua peça, que finalmente será definitivamente largada. São depositadas, para pouco depois serem carregadas nos camiões que nos trazem para a unidade.
Assim termina a operação, que à imagem recorrente dos camaradas q\ue transportam as cruzes, é um autêntico calvário.
Embora contando para classificação individual, esta prova sendo diurna, facilita o despertar sentimentos de interajuda; como tive oportunidade de constatar, ao longo de todo o percurso: há instruendos que se agrupam para efeito de incitamento psicológico de camaradas mais desanimados ou mesmo para transportar peças ou equipamentos que eles já não conseguem arrastar.  
Ao longo do caminho ajudamos sempre o companheiro que está em dificuldade, é uma regra fundamental que se respeita aqui na formação e que vigora em todas as operações; a classificação, sendo importante para efeito da posterior colocação, face a esta regra, é sempre desvalorizada.

– Prisioneiros de guerra:
É uma prova individual de tortura psicológica. A noite está a começar, estamos todos preparados para sair do destacamento. Os olhos estão vendados e as mãos atadas atrás das costas. Brevemente as Berliets carregadas de soldados arrancam para uma serra desconhecida onde nos vão largar. Vão dar voltas e mais voltas para baralhar a nossa orientação. Lá vamos aos solavancos, seguramente por estradões de terra batida. Decorridas cerca de duas horas paramos, um militar é colocado fora da viatura, arrancamos e andamos mais um pouco, outro é deixado para trás, ... outro, mais outro, ainda mais outro, não sei quantos, já lhe perdi o conto. Chega a minha vez, sou deixado num caminho de mato, com os olhos vendados, as mãos atadas e deitado no chão. Tento levantar-me, consigo ficar de pé, mas súbito cambaleante, vou embater numas pedras que estão ali ao lado, tento tirar as amarras, não consigo, tento encontrar uma pedra para cortar o baraço que me ata as mãos, passado algum tempo lá consigo cortar o fio, tiro a venda dos olhos, ponho-me à escuta. No silêncio da noite, ouço de vez em quando um camarada a chamar, sigo no sentido do chamamento e vou desatando os meus camaradas. Depois, já muitos, começamos a percorrer o estradão na direção dos apelos que ainda se ouvem, encontramos mais colegas amarrados, desatamos as cordas, por fim parece-me que estão todos desamarrados. Agora a missão é cada um a correr para o quartel. Pelo crepúsculo das luzes da cidade de Lamego consigo estabelecer uma aproximação  do local onde estou, apronto-me para regressar.
Não houve instruções em contrário, portanto vigora a regra máxima de todas as provas: não podemos circular pelas estradas nem ser apanhados pelos instrutores; há sempre viaturas na estrada à nossa procura, se formos apanhados voltamos ao início da prova.
Felizmente as viaturas militares fazem muito barulho, conhecemo-las pelo trabalhar do motor e pela forma; quando as ouvíamos ou víamos fugíamos para dentro do mato, como coelhos.
Por fim lá chegámos ao quartel, a mesa está posta, mas não há vontade de comer, só tomar banho e ir para a cama, enquanto alguns camaradas ainda vão chegando.      

– A dureza 11:
Estamos quase no final da nossa preparação; alguém alerta para o facto de na identificação da prova figurar o numero da semana do curso,  … mas logo de seguida recordo-me das lições de mineralogia  e começo a ficar preocupado, porque “dureza 11” significa que passamos ou vamos passar além do máximo da Escala (de dureza) de Mohs. De facto, são quatro dias dramáticos.  É uma prova de resistência e de dureza; de resistência à fome, à sede, ao sono e ao frio; de dureza pelos exercícios que nela decorrem. É um tempo sem lógica para nós, onde tudo nos espera e tudo pode acontecer: dormimos uma, duas horas por noite. Podemos almoçar só pão com café ou comer batatas cozidas com bacalhau, às três da manhã. A alimentação é muito pouca, temos como suplemento possivel galinhas que cacarejam assustadas, na gaiola ali memso ao lado; podemos mata-las e comê-las como entendermos, assadas, cruas, com penas, sem penas. Vi colegas meus a comerem nacos de carne de galinha crua. Eu prefiro as castanhas e a fruta como suplemento alimentar. Há sempre exercícios com balas reais na câmara, prontas a partir de rajada ou tiro a tiro, com a arma apontada ou com a arma encostada à anca, contra alvos de papel, onde a pontuação é anotada. Por isso, fiquei algo surpreendido quando cheguei a Viana de Castelo, à semana de campo, com os exercícios a serem dados com bala simulada, quando estávamos a poucos dias de embarcar para Angola; terá pesado o facto de ter saido de Lamego directamente para o IAO do batalhão. Montamos e desmontamos armas mesmo durante a noite, fazemos e desfazemos armadilhas. Fazemos patrulhas, assaltos simulados, com dezenas de metros a rastejar ou a correr e com queda na máscara e tiro imediato. Os quatro dias são passados nisto, um frenesim inebriante, que a todos toca, mesmo aos instrutores que também andam num rodopio. A resistência física  é elevada somos capazes de andar uma tarde inteira sempre em corrida, com passada certa. A fome? Um dia inteiro sem comer. Estamos a ficar robots pensantes. Mas o fim do curso aproxima-se e começamos a sentir uma sensação de alívio, pese embora o facto de terem ficado para trás camaradas que provavelmente não voltaremos a ver e com os quais criámos laços de amizade como se fossem irmãos de sangue.
Ao quarto dia regressámos ao destacamento onde uma outra grande surpresa nos espera.  

– As 24 horas de Lamego:
No dia em que tinha terminado a Dureza 11, chegados ao destacamento deu para tomar um magnifico banho e posteriormente saciar o apetite com um jantar com todos.
Quando esperavamos poder sair e avançar para um merecido repouso, fomos obrigados a ver um western;  já não me lembro do enredo, mas o título – O homem que matou Billy the Kid - ficou-me para sempre na memória. O filme é projetado no refeitório e são muitos os colegas que adormecem nas cadeiras, alguns acordam ao som dos tiros, outros porque cairam ao chão, mas ainda há os que caiem e continuam a dormir. Filme terminado e tudo em marcha rápida para lençóis … que quase não chegam a aquecer porque, menos de uma hora decorrida, o sono é interrompido ao som das granadas.
E já todos na parada, fomos informados de que se vai ter lugar  uma nova prova: as vinte e quatro horas de Lamego. É uma prova de conjunto, que numa fase mais avançada passa a ser de avaliação de equipas de cinco instruendos. Preparo o meu equipamento, como o tempo está de chuva resolvo levar o meu poncho, que pesa cerca de um quilo. Saímos do destacamento a pé, seguimos pela estrada nacional que liga Penude a Castro Daire, de um e outro lados, distribuidos em duas filas indianas. Começo a ver  camaradas que literalmente dormem enquanto caminham, cambaleiam, andam aos ziguezagues; outros mais resistentes e mais atentos na proximidade, agarram-nos pelo braço e puxam-nos para dentro da estrada, ou noutros casos lateralizam-nos e ajudam-nos a caminhar no ritmo de sono superficial. Passámos por Sucres, Candal, Matanchinha, Magueijinha, Bigorne e chegámos ao Colo do Pito. São dezoito quilómetros penosos que levam horas a percorrer. A manhã está a nascer. São formados grupos de cinco elementos, tomo a chefia de um grupo, entregam-me  uma bussola, uma Carta Militar à escala 1/25 000, e instruções escritas com azimutes definidos, que permitem identificar pontos notáveis que temos de atingir sequencialmente.
É também dado a cada instruendo uma sandes e uma peça de fruta, para as vinte e quatro horas da prova. O primeiro objetivo é atingir o cume da Serra de Santa Helena, uma enorme montanha rochosa. O percurso é sempre a direito, dista cerca de três quilómetros do Colo do Pito. Há diversas provas a realizar na serra, andamos sempre à corta mato. Num conmtrolo, sou informado de que a minha equipa tem cerca de duas horas de avanço relativamente ao tempo previsto, mas num dos últimos percursos engano-me, perdemos muito tempo, desmoralizamos. Chegamos a Tarouca ao princípio da noite, a população dá-nos maçãs e pão e nós sem dinheiro para pagar. Ainda faltam dezoito quilómetros por estrada ou dez a corta mato para chegar a Penude. Começa a chover, a noite fica negra como breu e o frio aperta. Um elemento do meu grupo oferece-me cinco mil escudos pelo meu poncho, quando eu ganhava como desenhador de construção civil dois contos e meio por mês; mas o poncho não sai dos meus ombros. Abrigo os quatro soldados do meu grupo debaixo de um alpendre, nas traseiras de uma casa que me parece abandonada. Salto para a estrada faço sinais paragem a todas as camionetas que seguem na direção a Lamego. Umas param outras não e das que pararam nenhuma ia para Lamego.Finalmente aparece uma que vai para a cidade, e consigo convencer o condutor a dar-nos boleia.
É uma velha camioneta de caixa aberta, para onde subimos; ninguém vai na cabina, porque podemos ser vistos pela ronda que patrulha as estradas. Passados dez minutos vi a coisa mais inacreditável da minha vida: homens deitados a dormir em cima de uma camioneta com a chuva a cair-lhes em cima e que deslizavam pela caixa ao ritmo de cada curva, embalados num sono profundo. Sem mais problemas lá chegámos ao destacamento ainda dentro do prazo das vinte e quatro horas. Houve colegas que demoraram quase dois dias a fazer o mesmo percurso, teriam dormido nalgum palheiro? Nunca o soube. No destacamento apesar da mesa, como sempre, estar  posta à nossa espera,  não comi nada. Tomei um banho quente e fui dormir, sem tempo contado, e foi o resto daquela noite, o dia seguinte e a noite que lhe seguiu. Esta foi a prova mais dura que realizei em Lamego, sofri mais neste dia do que nos vinte e sete meses de guerra que passei em Angola.
As histórias paralelas a esta narrativa ficaram por contar, é possível que um dia aqui as retome,  mas o texto já vai longo e a memória começa a ser apagada pelo tempo, já lá vão mais de quarenta anos sobre estes acontecimentos e o tempo não perdoa.
Estas memórias já deviam ter passado a memória futura há muito, quando ainda estavam frescas, mas só agora é que surgiu a oportunidade e vontade de o fazer.
Apetecia dizer que estou no sortilégio do Fernão Mendes Pinto, que esperou pela idade madura para verter em Peregrinação o multifacetado das suas aventuras e desventuras.
Escasseia-me a arte e engenho de um Fernão Lopes, para reportar como desejava a realidade nua e crua, real, objetiva e concreta.
Sinto-me tão condicionado quanto Milos Forman, no seu Amadeus, me parece conseguiu de forma sublime, sugerir que estaria psicologicamente Mozart enquanto escrevia a sua última obra, o Requiem, uma missa fúnebre, sob forte influência da morte do pai e na convicção de que seria para o seu próprio funeral:  não come, não bebe, não dorme, não pára.
Há dois dias que ando nisto, escrevo, rescrevo, vou à frente, volto atrás, só penso nisto; são vinte e três horas do dia vinte e seis de julho de dois mil e doze e eu aqui agarrado a esta coisa que não mais me larga.
Para que a memória não se apague aqui fica o meu testemunho.
26 de julho de 2012
Ferreira,
ex-furriel miliciano, CCS

2012-07-20

M34 -  A sorte protege os audazes …

Lamego, 1.º semestre de 1972,
Lucusse, 2.º semestre de 1972 // 1.º semestre de 1973.

A sorte protege os audazes … e os outros também, digo eu.
Que me perdoe o grande poeta romano, Virgílio (70 // 19 a. C.), o autor da ENEIDA e deste verso, dito pela boca de Turno, rei do Lácio; passados vinte séculos os Comandos, militares portugueses, vão busca-lo para seu lema. Será que era um incentivo à guerra? Agora é!...
Logicamente nunca compreendi esta frase, não será que a sorte protege toda a gente? A sorte, é a sorte, e nada tem a ver com os audazes / cobardes, ricos / pobres, bonitos / feios, novos / velhos.
A prova disso pode ser testemunhada aqui, através de três episódios que se passaram comigo durante a minha passagem pelas forças armadas, os não audazes também têm sorte, digo.
--- Quando ainda estava em Lamego, antes de chegar RAP 2, dei juntamente com um alferes miliciano ranger instrução a um pelotão da 36.ª Companhia de Comandos, que despois seguiu para Angola. A instrução correu sempre dentro da normalidade, mas podia ter corrido muito mal. Numa das instruções noturnas, o pelotão que nos está distribuído tem de percorrer um determinado percurso, sempre a pé: tem de ir de um ponto e chegar a outro completamente definido numa carta militar que lhe foi entregue, este percurso é um curso de água permanente, é expressamente proibido qualquer militar sair do ribeiro. Mas um “chico esperto” resolve sair do “trilho” e passar numa zona mais elevada adjacente ao ribeiro para não circular dentro da água. Teve uma sorte tremenda porque na altura estávamos a mudar a fita das balas da metralhadora, quando olhamos em frente e vimos um volto que caminha sobre a ravina, ficamos a tremer, se não tivéssemos reparado e começado a disparar imediatamente ele tinha tombado para o outro da lomba. Estamos sós, eu e um soldado, dei ordem imediata para não se disparar nem mais um tiro durante aquela noite. O militar lá seguiu na sua calma e sem a água pelas canelas. A metralhadora estava montada numa plataforma metálica, não permitia disparar para baixo, só num plano horizontal e para cima, já era uma proteção de segurança para os instruendos. Ao longo do percurso estavam montadas mais três metralhadoras que com os seus tiros rasantes faziam amouxar os instruendos que caminhavam dentro do ribeiro. Havia ainda o rebentamento de alguns petardos de Trotil, umas barras amarelas de quilo que eram detonados à distância com um explosor, eram depositados estrategicamente dentro de pequenos poços de água, que quando rebentavam levantavam dezenas de quilos de água e de lama num espetáculo único. Neste dia, a sorte protegeu o nosso homem. Nunca soube quem ele era.
--- Numa das nossas circundações pedestres e noturnas ao quartel do Lucusse, prémios dados ao nosso alferes Amaral pelas suas bocas aos seus superiores, prémios estes que ele depois repartia amigavelmente pelo seu pelotão, algo de estranho se passou comigo que passo a contar:
Logo no início da noite, depois do jantar, saímos do quartel já com o itinerário completamente definido, tínhamos um percurso a percorrer e uma paragem de poucas horas para descansar e finalmente o regresso ao quartel, pelo alvorecer. Lá fomos nós com todos os apetrechos necessários e suficientes para este tipo de operação, espingarda na mão, balas na arma e nas cartucheiras, granadas ao peito, cantil com água para quando a sede aperta, um saco cama e tenda para pernoitar. Seguimos em fila indiana, com a visibilidade suficiente para se ver o camarada que vai à nossa frente. Percorremos alguns trilhos, caminhámos também a corta mato, atravessamos alguns ribeiros. A perceção que hoje tenho é que circundámos o nosso quartel num raio entre os dois e os três quilómetros. Passadas umas duas a três horas de caminhada parámos para preparar uma zona de descanso e de dormida. Escolhemos um local protegido, bem dissimulado com uma abundante vegetação, onde era difícil sermos identificados pelo inimigo. Colocámos um fio que cerca toda a zona, agarrado a este uma granada defensiva, que em caso do fio ser forçado ou arrastado a cavilha salta e a granada explode. Montámos no interior do recinto as pequenas tendas, foram escalados alguns soldados para a guarda do acampado, de seguida enfiamo-nos dentro dos sacos de dormir e lá tentámos dormir. Passado cerca de uma meia hora a granada explode, gera-se o pânico no pelotão, os soldados vigilantes disparam as suas G3 para qualquer local exterior ao acampamento até os carregadores estarem completamente vazios. O mais estranho é que só houve o explodir da granada e os tiros das nossas G3. Pelo que entendi da situação, não havia inimigo … ou este estava calado? Por isso continuo dentro da tenda sem me chatear e sem me levantar. A ordem é posta, o sossego volta a reinar. O Amaral resolve passar ali toda a noite, de manhã, quando nos levantamos, fomos fazer a inspeção ao local, foi encontrado algum sangue, mas pouco, possivelmente proveniente de algum animal ferido pela explosão da granada ou talvez pelos tiros dos nossos atiradores. Lá regressámos ao quartel alguns com a barriga das pernas a tremer.
Não senti medo, nem pânico; como não fui visto no alvoroço surgido não sei se se aperceberam da minha falta, ou se me tomaram por cobarde, também ninguém me questionou. Já estava imunizado com tantas situações idênticas quando passei por Lamego. Mas se foi mesmo o inimigo? Aí podia ter tido muita sorte!...
--- A terceira situação é a mais simples e a mais grave de todas:
Um técnico da Tecnil – a empresa que construía na altura a estrada que ia ligar o Luso a Gago Coutinho – chega ao nosso quartel, pede ao nosso comandante para alguém lhe proteger uma buldózer de lagartas que ficou avariada junto aos trabalhos que estavam a realizar e que não podia ser movida. Uma parte do Pel. Rec., a minha secção, é destacada para fazer a proteção à referida máquina. Fomos num Unimog que também ficou connosco; passado uma meia hora chegámos ao local já no início da noite. Fiz uma escala de serviço para a segurança dos equipamentos e também da nossa própria segurança, o primeiro soldado de vigia sobe para cima da buldózer, senta-se no banco do manobrador, passado algum tempo adormece, dorme um santo sono até de madrugada. E nós ali no chão em tendas tão frágeis de lona também a dormir, a dormir sem pesadelos. Ainda hoje penso na sorte que tivemos, com tantos animais selvagens à caça e não sermos caçados. Creio que não fomos identificados pelos animais caçadores por causa do cheiro nauseabundo proveniente de óleo queimado e do gasóleo da buldózer que se sobrepunha ao nosso odor corporal. Creio que este foi o maior perigo que passei na guerra.
A sorte protege os audazes … e os outros também, digo eu.

… “Audaces fortuna juvat.”- Traduções: Audazes a fortuna favorece, A sorte protege os audazes. Verso n.º 284, Canto X, ENEIDA.
Autor: Públio VIRGÍLIO Maronis, poeta romano, 70 //19 a.C.
20 de julho de 2012
Ferreira,
Ex-furriel miliciano, CCS

2012-07-16

M33 - O encontro


Lucusse, uma manhã de dezembro de 1972


Uma Berliet está pronta para avançar para o Luso, com o Pel. Rec., comandado pelo alferes miliciano Amaral, o homem do cigarrito embutido na boquilha com a sua tosse traqueana.
A partida será imediatamente após a tomada do pequeno-almoço com a missão de levantar a correspondência oficial e particular no Quartel-general. Hoje no nosso quartel vai haver alegria e tristeza com a chegada do correio; alegria com as boas notícias vindas do Puto, tristeza com as más e também a do rosto daqueles que não recebem qualquer aerograma.
A viagem iniciada, segue-se pela nova estrada de alcatrão, negra, plana, lisa como uma folha de papel; é uma enorme serpente ondulante que mancha a paisagem esverdeante, atravessando ribeiros e pequenos rios, quimbos onde miúdos seminus correm loucos na vã tentativa de acompanharem nossa velocidade estonteante. Há uma alegria imensa quando nos vêm passar, como é possível que alguns anos mais tarde estejamos em campos de batalha opostos a tentarmo-nos matar? A mente humana é insondável, como diz António Damásio no seu livro O Erro de Descartes. Às vezes alguns miúdos têm sorte – um bocado de pão voa até ao alto para cair no chão poeirento, uma luta titânica surge de imediato pela conquista daquele naco do tamanho da palma de uma mão. O que interessa para alguns é o espetáculo, para outros é a tentativa de matar a fome. Mas … temos pressa de chegar, o motor da viatura está no seu máximo do seu rendimento, mas a velocidade não ultrapassa os 60 km/h, apesar de ser uma máquina quase nova.
Passado cerca de uma hora e meia chegámos ao Luso, sem qualquer problema, como é habitual.
De imediato é feita uma escala de serviço, para a guarda da viatura e das armas que nela ficam depositadas. Alguns camaradas têm algum tempo livre para desintoxicar pela cidade. É uma bela cidade, quase plana, implantada num grande planalto, com edifícios públicos e privados majestosos, alamedas largas e bem arborizadas, executada em esquadria perfeita, feita a régua e compasso. Faz lembrar as cidades projetadas e executadas pelo Marquês de Pombal – a baixa pombalina de Lisboa, esta com outra densidade habitacional e Vila Real de Santo António no Algarve. É servida pela linha do comboio que liga o Lobito à Zâmbia com uma enorme gare coberta, tem o Quartel-general – a sede de todas as decisões militares - vários quarteis, um campo de aviação militar, o casão militar, piscina pública, um grande cinema, hospital, tribunal, campo de futebol, o liceu Marcelo Caetano, comércio, todo o tipo de comércio. Por ali passa o tráfico da Kamanga, é um negócio fabuloso que rende milhões, a quem se mete nele. Sente-se que há muito dinheiro em movimento. Vive-se bem.
O furriel Ferreira é um daqueles que vai dar uma volta pela cidade, possivelmente visitar o Casão Militar para fazer algumas compras.
Mas …
Qual não é o seu espanto quando vê surgir ao longe, uma figura que lhe parece familiar. Com um baque no coração, acelera o passo na sua direção, quase que corre, agora o coração bate ainda mais forte, a figura torna-se cada vez mais nítida e é mesmo uma pessoa da sua família. É o Manel da Conceição, um “velhote” na casa dos cinquenta anos, primo direito da sua mãe. Agarram-se um ao outro como dois namorados, num abraço que parece eterno. Pergunto ao Manel o que anda a fazer naquelas terras tão distantes da sua casa, ele responde-me que está a fazer uma visita natalícia ao seu filho Augusto, que é Comissário de Justiça, na Policia do Luso e que já não vê há muitos anos. Eu sabia que após cumprir o serviço militar, o Augusto tinha ficado em Angola, mas não fazia ideia que estava na cidade do Luso – e eu ali tão perto. Pergunto como está a nossa família, e ele lá me vai explicando ponto por ponto tudo o que tem acontecido. Anoto o posto e as funções do Augusto na Polícia e prometo visitá-lo na próxima vez que venha à cidade. Mando saudações para os meus pais, irmãos e restante família, despeço-me do Manel com um abraço fraterno. E lá parto eu para a Berliet que a hora combinada de partida aproxima-se.
Levo no coração uma alegria imensa de ter encontrado aquele familiar e a cabeça a perguntar como é possível duas pessoas encontrarem-se a mais de seis mil e quinhentos de distância num determinado local, a uma determinada hora e para mais numa zona e tempo de guerra, onde as coisas não ocorrem normalmente.
Gostava de saber, entrando com muitos fatores – quantidade de pessoas no mundo, a área da terra e o tempo, quais são as probabilidades de um acontecimento deste voltar a ocorrer. Passaria eu o resto da vida a fazer contas? É uma coisa que ainda me martela a cabeça!...
Será que já me saiu a lotaria sem ter jogado?
P. S.- Passado algum tempo, visitei o meu primo Augusto na esquadra da Polícia, ofereci-lhe algumas garrafas de vinho do Porto e outras coisas vindas do Casão, coisas que ele não tinha acesso. Voltei ainda para me despedir dele quando fui para o Luquembo; o Augusto regressou à Metrópole após a independia de Angola, deixou a polícia para sempre e dedicou-se à agricultura e à pecuária nas terras do pai que entretanto morreu. Visito-o uma ou duas vezes por ano, e recordamos alguns momentos passados, naquela cidade tão bela e distante.
“Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura…”
 ext. do poema Em todas as ruas te encontro, de Pena Capital, Mário Cesariny (pintor e poeta surrealista, 1923-2006)
16 de julho de 2012
Ferreira,
ex-furriel miliciano, CCS

2012-07-12

M32 - Uma batalha campal no Lucusse…
Como se sabe, no Lucusse chegaram a estar seis Companhias: CCS, Cart 3540, duas de G.E. e duas de Katangas…
Certo dia, ao fim da tarde, num dos Kimbos que circundavam a nossa base, (não lhe quero chamar quartel), houve uma verdadeira batalha campal entre as Companhias de G.E. e as dos Comandos Katangueses. Eram mais de 300 homens em luta, ao que parece, motivada por disputa de mulheres.
Certo é que as bordoadas dos cinturões de lona da farda de camuflado e seus engates metálicos, deixaram marcas e de que maneira, nas cabeças e nas costas de mais de 50 daqueles.
A coisa só acabou depois da intervenção de graduados da C.C.S. pois já se davam tiros de G3 para o ar e havia ameaças de lançamento de granadas ofensivas.
Os ânimos acabaram por serenar, mas de seguida era vê-los á entrada da enfermaria, em fila indiana, sangrando das costas e das cabeças...
Um enfermeiro, rapava as cabeças, outro desinfectava, outro anestesiava e outro suturava e fazia os pensos.
No final, tudo acabaria mais ou menos bem, mas podia ter sido um grande problema, não só para eles, mas também para a CCS e a 40.
Mulheres a quanto obrigais!....
Fontes

M31 - O Artolas
O Artolas nasce em doze de julho de mil novecentos e setenta e um, na Escola Prática de Cavalaria, em Santarém.
Tem uma vida muito curta - um pouco mais de três anos.
É uma personagem “sui generis”: cumpre apenas os serviços militares mínimos, nunca é voluntário para nada, nem para ir para casa. Está sempre a medir os outros psicologicamente, a gerir as hipóteses de sobrevivência, está sempre em alerta, é reservado e arguto, mede todas as palavras, nunca não emite opinião, não cria atritos, quer apenas passar despercebido e ser indiferente a tudo e a todos, só está interessado numa coisa, em sair da situação em que se encontra rapidamente. Nunca teve um louvor ou um castigo, nunca participou de ninguém.
Não joga à bola, porque não sabe jogar – é trôpego; não joga à batota, porque não quer jogar – preza muito o valor do seu dinheiro; não fuma erva nem tabaco – mas compra-o para dar aos amigos, quando estes estão em baixo de finanças; não se emborracha – mas tem sempre uma garrafita de brandy Ponte de Amarante para dar um copito ao colega do lado; não dança – porque não sabe dançar, mas quando há batuque no quimbo lá está ele, sempre pronto, de olho arregalado a ouvir o som ensurdecedor dos tambores - são sons minimalistas e repetitivos que levam ao êxtase dos dançarinos e dos espectadores, o ritmo vibrante da dança das velhas é acentuado pelo barulho das caricas das tampas das garrafas, são instrumentos musicais primitivos, atados às pernas e suspensos de cordéis de sisal. Os pés descalços batem no chão num ritmo cadente, são como patadas de elefantes em corrida acelerada, levantam nuvens de poeira, que se misturam com suor. Há no ar um odor corporal que o faz agoniar. São horas e horas nisto e … o artolas ali ao lado sem mexer um músculo, impávido e sereno, só o seu cérebro vibra com aqueles movimentos loucos.   
O Artolas tem uma lavadeira linda, linda de morrer, era a mais linda das lavadeiras, uma rapariga mais ou menos da sua idade, os seus colegas cobiçam-na mas para ele, ela não conta: é alta e desempenada, da cor de ébano, de rosto caucasiano, brilhante e resplandecente, sempre a cheirar a sabão azul e branco, com roupas garridas, lavadas e engomadas. O Artolas nunca soube se ela era solteira, casada, junta ou viúva, para ele isso não contava; ele enquanto existiu fez voto de castidade – não quis deixar para trás ninhadas de artolinhas. Nunca soube o nome da mulher. Quando ela ia entregar a roupa lavada aos sábados, no quarto do Artolas e levar a roupa suja para lavar, os seus olhares cruzavam-se, havia como que uma atração mútua, mas o voto de castidade do Artolas nunca permitiu ir além deste olhar. Ela também nunca tentou tocar-lhe. Parece que os dois estavam interessados em manter apenas aquela situação. A ele interessava-lhe a roupa lavada e a ela os poucos angolares que levava. O pior da situação era quando os colegas do Artolas o viam sair do quarto … “tão pouco tempo? Então oh … É assim?” Assim o quê perguntava ele. “Ai se fosse eu …”
O Artolas tinha uma carapaça tipo tartaruga da ilha dos Galapos que o protegia de todas as bocas do mundo, estava-se marimbando para tudo e para todos.
Lê, lê tudo o que apanha: jornais vindos do puto, revistas de qualquer espécie, livros – novelas, contos, romances, poesia. Por onde andam os livros – Minha Senhora de Mim, de Maria Teresa Horta ou o Livro Vermelho do Mao Tsé-Tung?
A música também faz parte do seu passatempo: Adriano – Canção do soldado; Zeca – Traz outro amigo também; Carlos Santana – El condor passa; The Who – Quadrophenia; Moody Blues – In de beginning e … o Woodstock de 1969 por onde passaram todos os grandes músicos do seu tempo. O gravador vomita em altos berros, sons ora estridentes ora melodiosos, numa mistura de ruídos, sons vibrantes e limpidez de vozes, onde está a Janis Joplin com o seu Mercedes Benz? Com aquela voz rouca, sem instrumentos musicais, só alma, alma … O Artolas confidenciou-me: morreram todos, morreram todos comigo.
O Artolas nunca esteve de cara a cara com o inimigo, esteve sempre numa zona de guerra mas nunca disparou um tiro contra alguém … uma guerra santa. Era uma honra que ele tinha enquanto vivia, não ter feito mal a uma mosca.
O maior azar que teve foi quando a viatura em que seguia rebentou uma mina anticarro lá para o Leste do Lucusse, a jante da roda traseira do lado direito foi ter a mais de cem metros de distância completamente desfeita. O lastro da Berliet feita em chapa metálica tinha para aí de uns cinco milímetros de espessura, coberto por sacos de areia ficou abaulado na zona do impacto. O Artolas que seguia junto à cabina do condutor, mas na carroçaria – a cabina era aberta e só levava o condutor - foi projetado por cima desta indo cair à frente da viatura. A maior aflição que teve foi quando viu a sua G3 entupida com areia – sabia que não podia disparar porque esta podia rebentar-lhe nas mãos; então apanhou uma outra que estava abandonada e que parecia poder funcionar. Pôs-se à escuta para perceber de onde vinham os tiros do inimigo para escolher o talude oposto da berma da estrada como barreira protetora. Mas não havia tiros nem inimigo. Recorda-se de uma espécie de paragem do tempo que houve entre a explosão da mina e do tempo de queda em frente à Berliet, aquele espaço de tempo parece ser eterno, a sensação que teve não é boa nem má, mas é algo de novo e de muito estrado. Uma outra coisa lhe pareceu estranha foi seus colegas que iam na mesma viatura quando caíram ficaram assolapados como sapos agarrados ao chão sem reagiram ao que aconteceu, isto não acontece com o Artolas porque ele já tinha vivido este acontecimento, o seu cérebro já estava programado para reagir em função desta situação. Fisicamente ficou com um problema: rebentou os dois tímpanos, o sangue escorria-lhe pelos ouvidos e ficou para sempre com um zumbido na cabeça que se manteve até morrer.
Apenas mais uma coisa sobre o Artolas: nunca deixou roubar cabritos aos nativos, enquanto o seu comandante parecia um assaltante de estradas em correrias loucas com os seus súbitos atras dos bandos destes animais; é que o Artolas era um homem com ética.
O Artolas morre a três de setembro de mil novecentos e setenta e quatro no Regimento de Artilharia Ligeira, n.º 1, (RAL 1), ali para os lados de Moscavide.
PAZ ETERNA Á SUA ALMA.
“Sei que pareço um ladrão …
mas há muitos que eu conheço
que, sem parecer o que são,
são aquilo que eu pareço.”
 (quadra de Este livro que vos deixo, de António Aleixo, poeta popular, 1899//1949)
10 de julho de 2012
Ferreira,
ex-furriel miliciano, CCS
desfile em Viana do Castelo; genuinamente o "Artolas" marcha em contraciclo

2012-07-11

M30 - Vamos buscá-las
Só para recordar...
A montagem de registos fotográficos infra, dará uma ideia do dispositivo e técnica de sacar uma viatura sinistrada. Registe-se que numa situação real, o rodado dianteiro, ou na maior parte dos casos o conjunto eixos da frente era sempre retirado; a elevação da viatura rebocada era a registada.
Conseguia-se uma velocidade, no alcatrão, na ordem dos 80km/h; um pouco mais nas descidas.
  

2012-07-09

M29 - Esta noite… sonhei com a guerra!


“Estou aqui, neste local que mal conheço apesar de já terem passado tantos anos. Vou na terceira, quarta, quinta … comissão de guerra. São tantas que já lhe perdi o conto. Sinto-me velho, cansado, o corpo dormente, as pernas pesadas não respondem, estão presas, só o espirito voa, voa, está sempre a voar.
Os meus companheiros já partiram há tanto tempo, mas eu ainda aqui estou. Será que se esqueceram de mim? Porquê?
Os soldados que chegaram há meses não os conheço, não têm rosto; são máscaras do teatro grego, pétreas, alvas, impávidas, inertes, todas iguais; são autómatos mudos, lânguidos, eternamente calados.
O que se passa comigo? Não sei, só sei que estou aqui e o tempo não anda.
Há dois mundos separados por uma enorme barreira de arame farpado: lá fora há vultos, sombras que se confundem com a noite. Crianças de barriga inchada e uma enorme cabeça, são seres disformes, esfomeados, andrajantes; há ainda velhos e velhas esqueléticas e mirradas pela fome, de cabeças rapadas, de pele enrugada pelo tempo, eternamente submissos e serenos.
Não como, não tenho fome, nem sede, nem medo, sou um vegetal pensante. O tempo é um eterno presente, não me consigo lembrar do passado e o futuro nunca, nunca chega.
Quando é que este sofrimento vai acabar?
Porque se esqueceram de mim? Que fiz eu para não ter ido com os meus camaradas? Porque fui abandonado?
Já não tenho alma, nem vontade de viver, só o cérebro fervilha, não há dia, nem noite, só o decorrer lânguido do tempo.
Um enorme manto de nevoeiro, uma penumbra sempre presente, cobre-me e protege-me de tudo o que me rodeia. Estou no interior de uma clareira protetora, aqui dentro há e conforto mas lá lá fora não sei como as coisas decorrem.
Aqui as caras continuam sempre iguais, dia após dia, semana após semana, mês após mês, são peças de uma máquina enferrujada e parada no tempo.
Não tenho medo de morrer, estou em paz comigo e com as sombras que me rodeiam, há uma paz sempre presente.
Se aqui continuar também serei um autómato? Passarei um dia a ter um rosto de pedra, como os meus colegas?  
Não quero ser um robot como eles, quero continuar a ser eu, um ser pensante, apesar de já não ter corpo e só ter alma.
Só penso numa coisa: PORQUE SE ESQUECERAM DE MIM?” 
- Este sonho ou outro muito idêntico assalta-me duas três vezes por ano, há uma nostalgia sempre presente e um tempo eternamente parado.
“É preferível vencer o inimigo pela fome do que pelas armas…” (A Arte da Guerra” de Nicolo Maquiavel (1469-1527))
(era o que se pretendia com a guerra do Ultramar?)
14 de Junho de 2012
Ferreira
ex-furriel miliciano, CCS