2012-12-14

M42- A MX-58-05

Em meados de Junho de 72, a CCS deixou o Campo Miltar do Grafanil em direcção ao Lucusse; ficaram em Luanda 4 condutores para uma acção de formação em condução de viaturas Berliet.
Cerca de um mês depois o que pode ter sido algo como  um excesso de confiança traiu um deles.
Aconteceu aos primeiros quilometros da que foi uma das primeiras colunas em direcção ao Lunhamege.
O T. conduzia  na nuvem de poeira levantada pela passagem das duas outras Berliet que a precediam a MX-50-05; visibilidade tão reduzida, não deu para prevenir a aproximação à primeira ponte, travões aplicados de supetão, pequena derrapagem  minorada ideal pela existência de dois eixos traseiro, um ressalto provocado pela primeira travessa de madeira e o carro cai pela direita para a linha de água e felizmente sem danos maiores para os militares que nela seguiam
Ainda nesse dia, com o apoio da Tecnil que deslocou para o local uma Caterpillar de pá 944 e uma niveladora 140, conseguimos trazer a MX para o quartel no Lucusse

 Aproximação à ponte
A 944 a iniciar o levantamento da MX
Extração em fase de conclusão

Menos de um mês decorrido, tinhamos a viatura recuperada e com o aspecto belicoso da imagem que se segue


Cada vez que olho para este registo fotográfico, vem à memória o titulo de um filme de M.Oliveira., o  “Non ou a vã glória de mandar”, obra que por exemplo, é referência maior numa comunicação do XXVI Simpósio Nacional de História, S. Paulo 2011 (cf. http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300848463_ARQUIVO_ANPUH2011XimenaILeonContrera.pdf   em dez12).
O filme, esse foi estreado 11 anos antes, ou seja em 1990. Admire-se neste registo do youtube (http://www.youtube.com/watch?v=rseUK79x-vs em dez12) as doutas palavras do Alf Cabrita e outros; e,  mais importante, porque acredito que a MX-58-05 sobreviveu ao tempo...

Azevedo

2012-12-13

M41 - COGITAÇÕES

Às vezes, muitas vezes, dou comigo a pensar se, a “juventude actual” conseguiria passar o que eu, e tantos como eu, passei lá pelas “Áfricas” na chamada “guerra colonial”.
E chego à conclusão que não, definitivamente não!!!
Já me aconteceu estar frente à televisão e dar comigo a ver a partida de alguns militares em “missão de soberania” para alguns “palcos de guerra” (???) e pensar para comigo: - “e nós, como era” ?      
Muito diferente, concerteza.
Metidos no”mato profundo”, sem qualquer tipo de comodidades, longe de mundo civilizado, sem qualquer notícia do mundo dito civilizado, centenas de milhares de jovens (20, 21, 22 anos) viviam o seu quotidiano, com uma organização de causar inveja.
Direi, que, pessoalmente, e a título de um mero exemplo, estive durante meses, muitos meses, debaixo do sol tórrido africano, a viver em barracas de lona, num descampado algures no Leste de Angola, num aquartelamento (???) onde tínhamos que (sobre)viver…
A única água existente no local era uma grande poça, onde os animais selvagens bebiam, onde lavávamos a roupa e era essa mesma água que, no final, nos servia também para cozinhar!!! No Leste profundo – no Lunhamége!!!!
Banho, só “como os gatos”…
Durante mais de meio ano, dormi sempre fardado, a farda era, por isso, o meu “pijama”.
Agora, quando partem, levam computadores com internet, ar condicionado nas tendas (!!!), bons mantimentos (a nossa alimentação chegava a ser surreal), vão por períodos de 6 meses no máximo, e ganham ordenados chorudos...
Que diferenças, meus amigos, que diferenças !!!
Pois, dir-me-ão - mas vocês foram porquê ? Se tinham noção para onde iam, porque iam ?
Fomos, como se dizia na altura “voluntários à força”, e, salvo raríssimas excepções, sem sequer saber a motivação da guerra.
Éramos, como também se dizia na altura “carne para canhão”.
Mas nem tudo foi mau, podem crer.
O companheirismo, a amizade, a entreajuda, ainda hoje, passados que são 40 anos, perduram inabaláveis, bem como as (boas) recordações.

Rui Bacelar
Ex-Furriel da CART. 3540

2012-12-03

M40 - Uma história de Vida

Nos tempos que correm e quase nos arrastam, paramos para admirar homens de caracter que se destacam na agora sociedade em que quase vale tudo. Homens que passam de coluna inteira, que souberam tirar licões de vida dos próprios erros e que pelo que dizem e praticam são exemplos para os seus e para os muitos amigos de que se rodeiam  e tratam fraternalmente.Não conheci pessoalmente o A.B. , o que lamento; pisamos o mesmo terreno quase simultaneamente e tínhamos a mesma especialidede.
Amigo comum fez-me chegar o testemunho escrito e sentido que se segue e cuja leitura recomendo.

VIDAS

O menino Tóninho (A. B. em criança), criado num ambiente humilde, sem grandes bens materiais, teve no entanto uma infância mas com muita alegria e felicidade.
Desde muito novo, sempre foi amigo do seu amigo, solidário, com grande sensibilidade, carinhoso e atento.
No seu crescimento, teve duas fases muito marcantes. A primeira, na adolescência e principalmente na passagem pela Escola Industrial, altura em que se formou para a vida e descobriu as primeiras paixões (tão lindas) e fez novas amizades que ainda hoje se mantem.
A segunda foi a tropa. Principalmente o tempo da guerra colonial.
Nesse período da sua vida, não teve só experiências más. Viveu também momentos muito bons. Conseguiu até no meio daquela confusão, ser feliz. Muito feliz.
A companhia operacional em que o jovem A.B. era o furriel mecânico, foi colocada a operar no Leste de Angola, primeiro, por três meses a dar proteção à construção de uma estrada na zona da Lumbala, junto ao grande rio Zambeze.
Depois num local fixo chamado Luvuei, onde a principal missão era patrulhar toda uma vasta região onde existia um importante corredor de infiltração do PPLA e UNITA, vindos das suas bases sitas na Zâmbia.
A transição da dita companhia, da Lumbala para o Luvuei, foi feita na época das chuvas, por uma grande coluna militar e demorou quase três dias a percorrer cerca de 150 Km, quase sem dormir, sem qualquer higiene pessoal, alimentados com ração de combate, sujeitos a emboscadas e a minas que encontrámos e nos destruíram uma viatura que tivemos de reparar ali e seguir viagem.
Chegados ao Luvuei, o A.B. vinha na penúltima viatura da coluna pois as regras mandavam que os mecânicos de serviço iam nessa posição para cobrirem de eventuais avarias no resto da coluna.
O Luvuei era um pequeno aglomerado de palhotas situado em terras do fim do mundo como lhe chamavam na altura, mas onde a tropa tinha de estar por razões estratégicas. Teria uma população de cerca de mil habitantes indígenas que procuravam apoio e proteção junto à tropa.
Lembro-me como se fosse hoje. Ao chegar ao Luvuei, ainda bem de dia, voltando da estrada principal para o caminho de acesso ao quartel, deparo com um olhar triste e tão profundo de uma negra tão linda, que me marcou imediatamente.
Juro que não era meu propósito procurar estas situações, mas aconteceu. Felizmente aconteceu.
Cheguei ao quartel, devo ter tomado um banho, devo ter feito a barba, devo ter comido qualquer coisa, devo ter bebido umas cervejas e devo ter-me deitado num sítio qualquer a descansar, pois no outro dia tínhamos muito para fazer para render quem lá estava há mais de um ano.
Passados dois ou três dias, indo combinar as coisas com uma lavadeira que me indicaram, voltei a ver a negra linda  de olhar triste e profundo mesmo ali. Era sua irmã.
Passados cerca de oito dias, estava a viver com ela na sanzala. Numa zona que seria na altura o epicentro da guerra colonial no Leste de Angola.
Nunca me senti sequer ameaçado por alguém daquela gente. E se todos sabiamos haver por ali guerrilheiros infiltrados.
Passei noites em batuques. Passei noites ao redor de alambiques artesanais de aguardente de cana e de milho. Convivi com as mais variadas espécies de pessoas. Fiz naquela zona viagens de duzentos quilómetros sozinho, apenas acompanhado por indígenas e graças a não sei bem o que, nunca me aconteceu nada de grave.
Vivi cerca de catorze meses com aquela negra linda. Linda por fora e linda por dentro. De seu nome Esperança. Foram catorze meses que fizeram atenuar os horrores daquela guerra estupida e sem nexo. Foram catorze meses de autêntica felicidade que dariam um grande romance. Foram catorze meses que devem ter trazido ao de cima muitos dos meus sentimentos devida às grandes fragilidades existentes na altura. Eu tinha vinte e poucos anos. Era um jovem pouco mais do que um menino. Sensível ao que me rodeava. Agarrava-me a tudo o que de bom acontecia para minimizar o que de mau me era imposto.
Desta linda e pura relação, naturalmente aconteceu uma gravidez. Ainda mais desejada pela mãe, pois a cultura daquele povo, muito diferente da nossa, tinha como desejo da mãe ter muitos filhos que seriam o sustento da sua velhice e é uma cultura em que o pai pouco importa pois não tem que ser muito presente. É estranho para nós mas era assim e vai ser assim por muito mais tempo.
Qual o jovem que em 1974, com 22 ou 23 anos, naquele ambiente, a viver com alguém naquela cultura, se iria preocupar com anticoncecionais, preservativos ou outras coisas do género?
O meu filho deveria nascer por volta do fim do ano de 1974 e eu queria vê-lo a todo o custo. Então já em Luanda, em finais de Dezembro, tive dez dias de licença e resolvi cometer uma inconsciência de todo o tamanho. Rumei ao Leste (1.700 Km) já com Angola em guerra civil (viajem que daria outro romance) para ver se o meu filho já teria nascido. Para o ver. Para o conhecer.
Com algum custo, lá consegui chegar, mas ele ainda não tinha nascido. Tive de regressar a Luanda dentro dos dez dias que tinha, sob o risco de ser considerado desertor. Do Luvuei ao Luso viajei numa coluna dos guerrilheiros da UNITA e dali a Luanda noutras boleias que nem me lembro.
Normalmente, acabei a comissão e regressei a casa para junto dos meus pais, em Abril de 1975.
Desde essa data que no meu coração se abriu uma ferida. Todos os dias pensava como estaria aquela gente, principalmente o meu filho.
Entretanto casei em 76, tivemos duas filhas por sinal, gémeas e temos sido felizes. Eu quase, pois faltava-me algo para ser totalmente feliz.
Esta dor era só minha, este tormento solitário durou 37 anos.
Durante a guerra civil de Angola era inteiramente impossível procurar lá alguém, para mais na zona onde o conflito foi mais intenso.
Depois da morte de Jonas Savimbi, precisamente na zona nascente do rio Luvuei, veio a paz tão merecida para aquele pais e para aquele povo.
A partir daí comecei a procurar por vários meios, saber qualquer coisa sobre a minha família de lá. Foram tentativas e mais tentativas. Umas vezes com mais esperança, outras com muito desânimo. Mas nunca desisti.
Já no ano de 2012, por intermédio desta modernice do FB, fiz-me amigo dum ex companheiro da escola industrial que tal como eu, é agente técnico de arquitetura e engenharia e trabalha há anos em Angola.
Conversa puxa conversa, contei-lhe a minha história e ele disse-me que como ia fazer uma obra de requalificação da estrada que passa pelo Luvuei, se iria interessar pelo meu caso.
Sinceramente que nuca dei nada pelo que ele me disse. Descobrir uma pessoa de que nem sabia o nome, nascido num local totalmente arrasado pela guerra civil sem dados praticamente nenhuns, era como descobrir uma pequena agulha num enorme palheiro.
Já tinha havido pessoas a trabalhar naquela zona e teriam feito diligências neste sentido, que me diziam que aquelas pessoas ou teriam sido simplesmente abatidas, ou ter-se iam refugiado num qualquer campo de refugiados na Zâmbia.
A situação não se previa de resolução nada fácil.
Mas a minha esperança nunca esmoreceu. Com dias piores e outros melhores.
Acontece que mesmo sem acreditar em nada de divino, aconteceu aquilo a que os crentes chamam de milagre.
O nosso amigo Caçador, chegou ao local, pôs o esquema dele a trabalhar e consegui encontrar o meu filho.
Parece fácil, não parece? Como é que ele conseguiu, ainda não sei, porque ele ainda não me explicou. Mas que conseguiu, conseguiu.
Agora, calculem os meus amigos como é que eu fiquei. Estive mais de uma semana sem saber o que fazer e o que pensar. Parecia-me estar a sonhar. Fiquei tão feliz que não conseguia adjetivos para exprimir o que me ia no cérebro.
Acontece que tinha de dizer o que se passava à minha família de cá. E a mais próxima é a mais sensível a estas coisas, chama-se Isabel e é a minha esposa. Foi a mulher que escolhi para minha companheira para o resto da minha vida.
E ela sabia de tudo o que eu tinha vivido no Luvuei, menos a parte da gravidez e do nascimento duma criança.
O resto da família mais ou menos sabia, muito embora isto nunca fosse muito comentado, até devido à pouca probabilidade de um dia se encontrar a pessoa em causa.
Agora encontrou-se e eu tive de ter uma longa e melindrosa conversa com a minha Isabel. A reação foi naturalmente complicada. Ela percebeu a minha alegria e acaba por compreender uma situação resultante duma relação antes de termos qualquer compromisso. Não houve traição.
Ela custou-lhe muito, foi não ser conhecedora da situação quando outras pessoas o eram.
Errei por pensar estar a protegê-la. Errei e assumo. Errei e peço-lhe muitas desculpas.
Agora quero gerir esta situação com muita sabedoria. Quero dar tempo para acalmar os ânimos por cá, mas não vejo a hora de lá ir e abraçar o meu filho.
Já tenho uma fotografia dele, que segundo a minha família se parece bastante comigo. Já falámos por telefone. Já chorámos por telefone. Falta chorarmos com um forte abraço.
A mãe dele já morreu. Ele tem dois filhos e duas filhas, dos seis meses aos doze anos. (dum dia para o outro tinha um neto e passei a ter cinco). Foi militar na guerra civil de Angola. Atualmente é sargento no corpo de polícia de intervenção rápida (Ninjas). Chama-se J. P. B., porque a mãe fez questão de lhe dar o meu nome. A todos os seus filhos deu o nome de B (nota edit: o apelido do pai), mesmo nunca pensando que um dia nos iriamos encontrar. Os seus chefes deram-lhe todo o apoio e louvaram muito a minha atitude, por não ser uma atitude muito comum. Vive na cidade de Luena (ex Luso) e neste momento está deslocado a 260 Km a Norte, numa outra cidade chamada Saurimo a dar formação a novos polícias.
Muito mais poderia aqui dizer, mas penso já ter ajudado os meus amigos a entenderem melhor o que tenho dito no FB.
Vou mandar este documento por e-mail aos amigos que de alguma forma se interrogaram e se preocuparam comigo.
Obrigado pela vossa paciência e pelo vosso apoio. Acreditem que tem sido muito importante.
E um grande mas mesmo grande e especial obrigado ao nosso amigo Caçador.
   
A. B.



2012-08-12

M39 - Depois da RIC nº20,  o Dieta Trio

Com pedido de publicação chegou-nos esta foto de três valorosos combatentes; alinhados e na linha ... dali para trás era proibido virar à esquerda


2012-08-06

M38 - Maldita Ração de Combate

Alguém conseguiu esquecer a ração de combate, aquela maldita e enjoativa caixa de cartão reciclado, que continha uma lata com sumo de ananás, outra com leite achocolatado, uma de sardinhas em óleo ou tomatada, outra de atum e duas mais pequenas de feijão com cabeça de porco ou linguiça, além de outra com ananás em calda, um pacote de bolachas, um comprimido de halazon para purificar a água e um de café que por sinal de entre tudo, era a única coisa de que eu verdadeiramente gostava ? Claro que não…


Lembro-me das primeiras operações em que participei. Carregava tudo aquilo no saco que me estava distribuído, uma embalagem por cada dia… Sendo enfermeiro era privilegiado, porque tinha direito a um pobre carregador, que com tudo alombava.
A sequência dos dias em que se comia aquela ração de combate era de tal forma vertiginosa,  que penso que mesmo os mais valentes a terão rejeitado. Três dias de operações a pé a comer ração de combate. Chegados à base, seguiam-se alguns dias de “descanso” em que tínhamos de participar em patrulhas, etc., mas aqui sim, descongestionávamos comendo ração de combate, mas por pouco tempo, pois logo partíamos para nova operação de mais 5 dias, desta vez com uma grande diferença, é que a comida era de novo a velha ração de combate…


Conclusão! Enjoei de tal forma aquela alimentação, que as minhas provisões alimentares passaram a ser o leite achocolatado, o sumo de ananás  e as bolachas. De quando em vez uma latita de feijão com linguiça ou cabeça de porco, pois como era enfermeiro gozava da faculdade de levar álcool e algodão em rama, com o que sem fazer fumo para não denunciar a posição do grupo, aquecia aquele repasto que deglutia sem quase o enxergar, quanto mais saborear…


Depois que a Companhia rodou para o Luquembo, tudo começou a ser diferente. Ali fazíamos sobretudo acção psicológica. Embora a cadência fosse mais ou menos a mesma, três dias fora seguidos de alguns mais folgados e logo mais cinco, o raio daquela ração de combate sempre nos perseguia, mas de mal o menos, afinamos a viola… Se passávamos por Quirima, trocávamos rações de combate por arroz, massa, salsichas etc, na casa do civil, (loja do tem tudo). Alguém arranjou uma caixa de madeira que entalamos entre o banco do Unimog, os colchões e sacos cama. Arranjou-se uma máquina Hipólito, a petróleo, (fogão) para cozinhar e tudo… Por vezes em troca das malfadadas rações, levávamos algo do depósito de géneros, que nisso o AA, até colaborava e, ao passarmos alguns rios mais caudalosos, arranjávamos alguns peixes que partilhávamos com as populações, detonando umas granadas ofensivas, ou, outras vezes, se alguns cabritos andassem mais mal guardados, algum era logo caçado, transformado em opíparo churrasco e comido.
Assim substituíamos com êxito as malditas rações de combate de que ainda hoje não guardo saudades.
“Das minhas memórias de Angola”.

Fontes

2012-08-01

M37 - EU ESTAVA LÁ!...

Rua António Maria Cardoso, Lisboa, uma noite de Fevereiro de 1974.
Nesta rua fica a sede da PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), o CNC, (Centro Nacional de Cultura) e o Teatro S. Luiz, entre muitas outras instituições. As instituições aqui apresentadas são tão díspares e antagónicas: a PIDE defende a manutenção e a defesa do Estado Novo, o CNC e o Teatro S. Luís a elevação cultural do homem ao nível de um ser pensante.
Estou aqui, nesta rua, à porta do CNC, sem bilhete para entrar, assim como todos os outros meus camaradas para assistir a um concerto do Zeca. Não é preciso bilhete para ver o Zeca, somos todos convidados; quando as portas se abrem lá vamos nós numa enorme alegria e comunhão de ideais fraternos; somos uma família sem nos conhecermos.
A noite é fria, é uma noite de inverno, cai uma chuva miudinha que se entranha nos ossos, mas como somos novos, tudo aguentamos, os ânimos estão ansiosos e agitados – não é todos os dias que se tem a oportunidade de ver o Zeca. Só há jovens, muitos jovens, mais de uma centena, fala-se em surdina sobre diversos assuntos, sente-se no ar um ambiente que cheira a mudança – junto a mim comenta-se o caso de uma miúda que perdeu um sapato a correr à frente à Polícia de Choque entre o Instituto Superior Técnico e a Praça do Chile há umas semanas atrás depois de uma carga policial. Os que estão sós, como eu, encostam-se pelo muro que está em frente ao Centro, do outro lado da rua, apuramos os ouvidos, ouvimos os últimos acontecimentos culturais, políticos, situação económica do pais, situação da guerra do ultramar. Eu, sempre calado, sou como uma esponja a absorver tudo o que me rodeia; quase há dois anos que não estava em Lisboa, tudo aquilo é novo para mim.
A noite avança devagar, os ânimos a agitam-se, agitam-se cada vez mais, já passa meia hora do previsto para o início do espetáculo, e nada, o tempo passa, passa e o concerto nunca mais começa.
Eis quando alguém chega a uma janela do CNC e anuncia que o espetáculo tinha sido cancelado, sem mais comentários ou explicações.
Foi o bom e o bonito, uma enorme barulheira, bocas e mais bocas revolucionárias, saídas das gargantas enfurecidas, um bater de pés que parece uma trovoada, é um barulho ensurdecedor e a malta toda ali sem arredar pé. Passam dez minutos, meia hora, uma hora e a situação mantém-se exatamente na mesma: “Zeca, Zeca”, “daqui não saímos”; passado algum tempo, eis que aparece a Policia de Choque.
Vem do Largo do Picadeiro, sobe uma pequena rua inclinada que é a Travessa dos Teatros e que vai embocar na Rua António Maria Cardoso, vem a compasso com passada firme e ritmada, a cadência começa a aumentar para depois acabar numa correria desenfreada e desorganizada – parece que vão em velocidade acelerada. A multidão que está em frente à travessa dispersa-se, uma parte vai para a direita para o Largo do Chiado e a outra, a da esquerda, desce a Rua António Maria Cardoso, a caminho da Rua Victor Cordon. A polícia é uma enorme faca que corta de alto a baixo a multidão, dividindo-a em duas partes.
Corpos enormes, bem nutridos, são como os touros enraivecidos da arena do Campo Pequeno, vestidos de negro, com capacetes e coletes protetores e à prova de bala, armados de escudos e de bastões, sem dizerem uma só palavra, começam a distribuir fruta da grossa sem ser pedida, levam tudo à frente, os mais fracos ficam para trás, especialmente as miúdas, ficam enroladas no chão a contorcerem-se com dores, a serem massacradas a pontapé e à bastonada, não há lógica, nem compaixão, é uma situação que só vivida é que dá para entender. A brutalidade impera, e nós só queríamos ver o Zeca.
Há uma multidão em fuga, desvairada e descontrolada à procura de refúgio. A noite é cortada por gritos lancinantes, há cacetada e mais cacetada, há cabeças partidas a sangrar. Alguns dos que descem a Rua António Maria Cardoso, entram no Teatro S. Luiz mesmo sem bilhete numa tentativa de se esconderem dos agressores, tudo isto perante os olhos esbugalhados dos porteiros.
Eu, impávido e estupefacto, fico aqui parado como uma estátua humana em frente à travessa, local onde sempre estive, com a mão direita levantada e com o B. I. Militar na mão, assim fico, não sei se sou tomado pela Polícia por algum bufo, mas ninguém me toca; figuras horrendas e arfantes passam à minha esquerda e à minha direita como relâmpagos fugazes na noite escura. Passados uns momentos estou só, tudo vazio à minha volta, um silêncio sepulcral, quando olho para o lado vejo um miúda deitada no chão a sangrar da cabeça, ajudo a levantá-la e digo-lhe que temos de ir ao hospital, mas a rapariga aos berros grita comigo que não quer ir para o hospital, tem medo de ser presa. Proponho então levá-la a casa do nosso médico de família, um santo homem já maduro que vive ali na Rua S. Bento. Apanhamos um táxi e lá vamos os dois com o taxista. Tocamos à porta, já passa da meia-noite, vem a criada em robe e diz-nos que o senhor doutor está fora num congresso e que não há mais ninguém que nos possa ajudar. Voltamos ao táxi que está à nossa espera, com poucas palavras explicamos ao taxista a situação, então ele diz-nos que conhece um centro de enfermagem que trata bem as pessoas e não quer saber de onde elas vêm ou o que se passou com elas para ali estarem, confiámos no taxista e lá vamos nós. Descemos a Rua de São Bento, fomos ter a uma rua junto à Assembleia da República. Saímos do táxi, perguntamos ao taxista quanto era o seu trabalho, diz-nos que também já foi jovem e que nos compreende muito bem o que nos aconteceu e não quis o pagamento da bandeirada. Fizemos o tratamento no centro de enfermagem: raspagem parcial do couro cabeludo, cozedura do corte com alguns pontos a frio, colocação de uma enorme ligadura branca a envolver toda a cabeça. De seguida fomos até à república universitária onde a jovem vivia e que ficava na Rua da Escola Politécnica em frente à velha Faculdade de Ciências, é estudante do 3.º ano de Matemática, angolana, branca e chama-se Nini Viana, assim o diz. Depois disto encontrámo-nos algumas vezes, para aí uma meia dúzia, ela sempre com um barrete vermelho na cabeça a esconder as ligaduras, falamos de acontecimentos atuais, petiscamos sempre alguma coisa na zona da Fundação Gulbenkian, a zona em que vivia em Lisboa e a sede da minha licença militar. Nunca me deu o seu contato, ela é que me contata sempre e vem ter comigo. Passado para aí umas duas semanas pede-me para levar uma encomenda para Luanda quando eu regressa-se a Angola, para entregar a familiares. Digo-lhe que é impossível, não posso levar mais nada porque já tenho peso a mais com coisas para mim e para alguns camaradas. Parece ficar amuada, sem dizer mais uma palavra, despedimo-nos, nunca, nunca mais vi a Nini.
P. S. - Se a Nini, lê-se agora esta crónica – viveria novamente os acontecimentos trágicos mas solidários daquela longa noite, devia sentir a mesma nostalgia que eu sinto neste momento ao escrevê-la.
Há situações que marcam para sempre a alma de uma pessoa.
Esta é a minha história e a da Nini
Eu estava lá!...

“… O amor tem de haver …
… O amor é a poesia…
… O amor é não haver polícias.”

Poema: O amor – escreveu Inácio da Silva Cruz, 10 anos.
In: “A criança e a vida”, edições ITAU, 1969,
Antologia de Maria Rosa Colaço – Enfermeira, jornalista, professora primária, 1935//2004
1 de agosto de 2012
Ferreira,
ex-furriel miliciano, CCS

2012-07-31

M36 - O Telegrama
Chegamos a uma altura em que tinhamos “desligado” da guerra; ou era como se não existisse, para confirmar no terreno uma das máximas dos próceres do regime.
Doia-me por isso; e mais, por força desse desligar, viriamos a sofrer por  morte, sangue e medo, já depois do 25 de Abril, com as baixas na emboscada feita a camaradas da 3540.   
Agarravamos-nos sem descortinar, a uma loucura construida, para esquecimento do tempo que tardava. Prolongavamos os dias pelas noites, para que no limiar do esgotamento, a ansiedade esmorecesse. Contrariando o poeta, elevamos a loucura  a coisa  sadia; porque lúcidos, a imaginação teria de ser atenazada, sem o que nos levaria para o sofrimento do prisioneiro.
Os episódios sucediam-se no encadeado dos dias, e nestes, na volta dos ponteiros do relógio.

Luquembo …
Era mais um dia de calor viscoso, de um verão africano e obeso.
Estou a atravessar campo aberto, na passada rápida possivel, de fuga para uma sombra e cruzo-me com o furriel MCS, que em geito de saudação exclama: “Nada para o puto?”
O calor que  embota o espirito, retarda a reflexão sobre o sentido da mensagem; dois passos decorrridos, vislumbro um potencial convite
(será um sugestão para uma Nocal?)
Mas a sede por si só, não sendo de morte, não justifica  a alteração de rota; um passo mais e, do subconsciente do desejado, arranco o que vai revelar-se ser a aposta certa: “férias?” e ele replica: “YES!”
Está validado o refazer dos trajectos; e já chegamos … estamos a pedir duas bem frescas … tocamos as garrafas, num brinde mudo e saboreia-se o silência reconfortante do primeiro trago. Depois …
(este felizardo vai pela segunda vez de férias ao puto … fosse eu agora de férias e não voltava … deixa cá ver, rodamos há 4 meses  … já tinhamos do anterior, no que interessa ao caso, outros quatro … ele arranca já amanhã  … ok! é isso!... )
“Então faz-me o favor de na passagem da segunda  para a terceira semana de férias, colocares este telegrama dirigido ao alf T”, digo, enquanto que num papel, que descortinei num dos bolsos, junto palavras , em  frases entrecortadas por stops como era uso e costume à época. Dobrei o projecto do potencial telegrama, depois, no exterior relevei a data limite para expedição e com ar grave depositei-o nas mãos do MCS que generosa e cortezmente guardou sem ler.
Acabaram-se as loiras e saudamos: “adeus até ao meu regresso” contra “boas férias”
O episódio passou-me rapidamente para a memória arquivo das coisas imaginadas, loucas e construidas; amanhã, que não mesmo hoje, há mais e a que já foi, está esquecida.
Creio que pouco tempo depois de chegar ao Luquembo terei deixado de ser o homem pressionado, para enveredar pelo irónico; seria talvez uma das possibilidades  de  assegurar alguma razoabilidade de saude mental. A ironia é um estado em que as pessoas, de certo modo,  não se conseguem levar a sério, já porque têm consciência de que se descrevem a si próprias, estão sujeitas a mudança, têm memória das suas  contingência e fragilidade; um saber que não se sabe, uma libertação da liberdade.
Isto e muito mais, esteve na origem de ter adquirido uma “moradia“ no quimbo a norte da messes oficiais, tendo lá promovido convivios de toda a espécie e a oportunidade de travar as conversas mais delirantes e mais profundas desses dias.
Mas voltemos ao que viemos.        
No referencial tempo, estamos no décimo dia após ter estabelecido o pacto do telegrama com o MSC;  acabo de tomar o pequeno almoço e saio da messe para iniciar uma caminhada  de cerca de 5 minutos que me vai levar ao quartel. O que era promessa na alvorada, começa a confirmar-se , vem aí mais um dia de calor sofrido.
Ainda umas dezenas de passos a mais dentro do quartel e atinjo a zona da oficina auto e, como para mim digo de há uns tempos a esta parte, os galões permanecem  descansados; os mecânicos e os condutores cresceram como homens, não se perfilam com questões ou conversas que reflitam mal estar de maior e dão ares de viverem com alguma descontração, facto que para alguns disfarça de forma satisfatória as ansiedades ou angústias de que sofrem. E as tarefas são cumpridas dentro do prazo limite e de forma correta
Mais uns minutos de troca de impressões com o Mário, o amigo para sempre, e o grande o responsável por esta calma e sossego oficinal.
Fico mais um pouco, na passagem pelo “escritório” para reler umas anotações feitas de véspera num livro, arrumar uns papeis e escrever para casa.
 A manhã já vai longa  e não há vontade para continuar sentado; arranco para uma deambulação ou seja um passeio feito de lentidão, preferencialmente a perseguir zonas de sombra ... continuo e súbito, começo a dar conta da  cantar sincopado do códiog fonético internacional:  viktor-alfa-mónaco-oscar-sierra-lima-alfa … se de facto tivesse sido este cantar, estaria em sintonia com o que pensei.
(vamos lá … nem mais,  era o que andava a procurar)
Infleti para o local do cantante; um dos locais que propiciava a recolha de boas e actualizadas informações.
Entro sem bater, ou duvidar que sou bem vindo, que a porta está sempre aberta e o pessoal é de uma afabilidade extrema. Saudo todos os presentes que retribuiem, para rápido retomarem os afazeres com o que vem e vai pelo éter.
Poucos minutos decorridos chega o benjamim do grupo  com  protocolo das mensagens que terá acabado de entregar e quase em simultaneo o alf T, que com um sorriso aberto para todos, sauda e rápido apreende que está tudo dentro dos parametros de normalidade.
Mais uma pequena troca de impressões com o pessoal que está de serviço e retomamos uma conversa que tinhamos iniciado ao pequeno almoço.
Mas eis que começa a espraiar-se uma onda de cochichos e de risadas curtas; interrompemos para escutar uma mensagem, que está a ser retransmitida às claras, pelas TRMS do quartel de Malange:
“ … vou repetir, MUITOS PARABÉNS STOP MÃE E GÉMEOS DE PERFEITA SAÚDE”
(onde é que já ouvi isto?)
O alf T, súbito agitado e consciente do sentido da mensagem, arma um sorriso bonacheirão e pergunta:” ... e quem é o sortudo?”
(agora é que vão ser elas!)
Alguém exclama,  por entre uma risada “É você alferes”
Explodem risos desbragados e genuinos e uma expontânea salva de palmas, que da parte de alguns . termina com umas palmadas amigáveis nas costas do visado. O alf. T está suspenso, o sorriso anteriormente de bonomia, quebrou, como se ele já tivesse começado a deitar contas à vida. Mas as palmadas nas costas, de vigorosas,  ajudam-no  a recompor-se; o rosto reassume o ar rosado e saudável que lhe é habitual e começa a agradecer o mar de felicitações
Da minha parte, acompamho todos os votos dos sitiantes, como só um irresponsável senior conseguriia
Com o ponteiro dos relógio está sobre as 12 horas e convoco o camarada “sortudo” para um pré pranteal; ainda estou em fase de adaptação para o que deve procurar-se  que aconteça a seguir. Vimos para o exterior,  no instante em que está a passar uma viatura, sinalizo ao condutor e forço uma boleia até à messe, que o sol vai alto e queima.
Chegados, divulgo a “boa nova” e o alf T agora já quase num registo de eufórico, dá instruções ao Martins, para que abra uma conta a fim de carregar os consumos dos camaradas que vão solidarizar-se com a noticia
O último a chegar é o Comandante, que vem à boleia, no jeep do cap AA
Cumprimenta e como é hábito chega-se ao balcão, onde já o aguarda o whisky da ordem; antes do primeiro golo, já está a ser esclarecido sobre o motivo do bar aberto. Molha a palavra, avança dois passos, na direcção do alf T, dá os parabéns e brinda.
O cap AA, habitualmente dado ao remanso, desta vez fez uma leitura muito rápida das circunstncias e lesto no seu passo miudinho, avança para quarto, de onde regressa com três garrafas de espumante, que, indubitavelmente felicissimo, deposita  no balcão e, alto e bom som, dá parabéns especias e prossegue esclarecendo que as garrafas são para brindar no final do almoço.
O Alf. T desmultiplica-se em agradecimentos e continua na conversa com o Cmdt; acabam de juntar-se a eles o cap AA e o maj R, quando de relance ouço: ”então o nosso alf. T tem interessem em antecipar as suas férias?”
(oh!, oh!  isto está a ficar um bocado enviezado, com esta boca do Cmdt)
“Sim, sim, se o Sr. Cmdt estiver de acordo!”
(Tenho de tratar muito rapidamente da passagem ao plano B! )
Na primeira oportunidade crio um espaço junto do Cmdt e reporto-lhe a génese de todo o acontecimento  e acrescento que considerava vantajoso que ele não entrasse no cenário, designadamente com a  insistência na antecipação de férias, e que, se necessário, estava disponivel para retratar-me como o mau da fita.
(agora é que vai ser de partir a loiça … já da última vez, me tinha recomendado para ter cautela)
Mas o homem parece estar manifestamente bem no meu plano A. Olha em redor, avalia a animação de cada um e de todos
(está a gostar … este sorriso de ironia fina …  olha para o copo  … vai pedir outro wishky)
vai ao balcão, pousa o copo  e com um movimento quase impercetivel sinaliza que quer mais gelo; regressa , fita-me com o que designo de olhar atravessado nº1, inclina-se ligeiramente, e  de forma reservada diz: “OK!, mas primeiro vamos dar cabo das garrafas do cap AA”.
Assim se cumpriu …    
azevedo

2012-07-30

M35 - O RANGER

Lamego, 2.º semestre de 1971

O Centro de Instrução de Operações Especiais (CIOE), foi criado no ano de 1960, com o objetivo de:
-        Instruir quadros do exército nas várias modalidades de operações especiais;
-        Realizar estágios de subunidades, tendo em vista aperfeiçoar a sua atuação numa ou mais modalidades destas operações;
-        Levar a efeito estudos que, de qualquer modo, possam contribuir para melhorar a eficiência das Forças Armadas, no que diz respeito à sua atuação em operações especiais designadamente nas de maior interesse para a defesa do território nacional.
Ficou aquartelado na cidade de Lamego, no antigo Convento de Santa Cruz.
Durante a guerra colonial mantem-se o curso de operações especiais: até 1968, frequentado por aspirantes e cabos milicianos (depois promovidos a alferes e a furriéis milicianos), como especialidade complementar; a partir do início de 1968, por instruendos do COM e do CSM, como especialidade base, primeiramente durante o 2º ciclo, depois nos dois ciclos.
A instrução privilegiou o conhecimento de técnicas de infiltração profunda, orientação, ocultação e sobrevivência, constando dos programas a preparação psicológica, a gestão de esforço fisico (capacidade de resistência a esforços violentos em condições adversas, fadiga, sobressalto, etc.), o  manuseamento de explosivos, a travessia de cursos de água, o planeamento tático, a gestão de patrulhas de longo alcance, emboscadas, golpes de mão.
Ou seja, no que interessava, criaram-se especialistas em contra-guerrilha, em ação psicológica sobre as populações e em operações de reconhecimento de vários locais estratégicos, podendo posteriormente realizar-se ou não ações de guerra.
O CIOE foi extinto em 31 julho de 1975.
Em Fevereiro de 1981 foi reativado, recebendo então complementarmente a missão de preparar forças de Operações Especiais, de grande grau prontidão, autonomia e intervenção.
Em Julho de 2006 o CIOE passou a designar-se Centro de Tropas de Operações Especiais (CTOE) e a integrar a Brigada de Reacção Rápida.
O petit nom de RANGER decorre do facto de em 1962 o Estado Maior do Exército (EME), ter nomeado o Cap. Art. Bacelar Begonha para frequentar, na América do Norte, o Curso “Ranger”, com o fim de promover em Portugal um curso idêntico, naturalmente adaptado aos teatros de operações  africanos; este curso vai ser dado no CIOE.
Depois do laboratório de Argélia, começava a ser dada preferencia à experiência dos miltares no Vietname: uma instrução/formação militar de operações especiais, tipo ranger (muito provavelmente a formação de Ranger Training, de Fort Benning, na Georgia). Daqui deriva a designação de Ranger que passam a assumir como sua, os militares que conquistam a placa de especialista de Operações Especiais.
Funcionou até ao fim da Guerra Colonial, ficando conhecido pelo nome de “Curso dos Rangers”.

Um dia da vida instrutiva do “Ranger”:
O instruendo não tem hora certa para descansar; é forçado a levantar-se a qualquer hora da noite: às vinte e duas, à meia-noite, às duas, às quatro ou às seis da manhã, tem de estar sempre disponível.Não há clarim para tocar a alvorada; o som metálico é sempre, mas sempre, substituído pelo estrondo de granadas ofensivas que rebentam à frente das casernas, passados dois minutos tem de estar na parada, formado com o seu grupo de combate, geralmente em camisola branca, calça de camuflado e bota a condizer; de seguida são feitas suspensões nas barras fixas, que estão mais à frente na parada estrategicamente montadas.
Este exercício tem a finalidade de despertar/estimular os formandos e de fazer alongamentos musculares (esperguiçar); é o início da preparação física diária. De seguida vai tomar o pequeno-almoço, este é livre e sem formalismos, com a alimentação sempre à descrição: pão, fiambre, queijo, manteiga, leite e café, e cada qual come o que quer e bebe do que mais gosta. A alimentação é muito boa, em quantidade sempre sobrante, e muito variada (diz-se que a Nato ajuda a pagar a nossa alimentação). O problema é que há muitas refeições que são passadas em branco; quando saímos em patrulha é certo e sabido, não levamos quase nada para comer, levamos uma sandes, uma peça de fruta e nada mais, depois temos de nos desenrascar. A população civil é calorosa, afável e solidária, dá tudo o que tem: enormes pães de centeio, que parecem rodas de carros, chouriços, queijo, presunto, vinho e aguardente. Uma vez, na Régua, pelas sete horas da manhã, um padeiro que andava a distribuir o pão pelos cafés que por essa altura começavam a abrir, deu um saco dos da farinha cheio de carcaças para os homens que iam comigo; foram logo devoradas ali, assim sem mais nada, depois de uma noite intensa de exercícios nas margens do rio Douro. Nunca soube se este padeiro recebeu algum dinheiro pelo pão, mas valha a verdade era hábito o comandante mandar pagar todos os danos causados pelos instruendos, designadamente trigo ou centeio pisados, culturas hortícolas danificadas. Não é permitido ao instruendo levar dinheiro para as patrulhas, faz parte do conceito permanente  de sobrevivência pura. Comi muito pão dado pelos aldeões da zona, castanhas que apanhava do chão debaixo dos castanheiros, restos de fruta que ficavam penduradas nas árvores depois da apanha (estamos no fim do outono).
As refeições são tomadas no único refeitório que temos; o comandante, os oficiais, os sargentos, e os instruendos, comem todos aqui. Há mesas pequenas para oito os instruendos e uma grande mesa – presidencial – no extremo poente do refeitório; é uma mesa de oito por um metros, onde se sentam o comandante, os oficiais e os sargentos, bem como o instruendo de dia que tem um lugar cativo.
Quando algum instruendo faz anos, há sempre um enorme bolo oferecido pela companhia, e que é colocado sobre a mesa presidencial, tendo o aniversariante de o partir e distribuir por todos os presentes, depois de se cantarem os parabéns.
Temos uma formação muito objetiva, com muitos tipos de armas, incluindo as do inimigo, todo o tipo de materiais de guerra e equipamentos militares. Os instruendos têm de saber desmontar e montar a sua G3, com os olhos vendados. A montagem e desmontagem de armadilhas ocupam também muito do nosso tempo. Aulas práticas, são dadas num terrapleno em que só podem estar dois formandos de cada vez e adjacente a este há uma parede vertical de proteção com cerca de um metro de altura. Antes do início desta formação é feito um aviso solene de que é para aí que se salta quando alguma coisa corre mal.
Tive conhecimento de que num dos cursos seguintes ao meu, o nosso instrutor de minas e armadilhas – um alferes da Academia Militar - tinha morrido a tentar safar um dos instruendos numa destas aulas.
Toda a nossa formação assenta numa responsabilização e formação muito elevada para a guerra, aqui não há lavagem ao cérebro, trata-se sim de testar e ensinar os limites do corpo e da mente humana. Nos fins-de-semana de ida a casa, se alguma coisa correr mal ou formos apanhados pela Polícia Militar (PM), ou por qualquer graduado, temos de imediato ou logo que chegamos ao destacamento, de apresentar um relatório circunstanciado, que o comandante mais tarde vai comparar com o auto da participação, estando o instruendo sempre presente; se tudo estiver conforme, o auto de participação é sempre rasgada pelo comandante e segue para o cesto dos papéis.
Nunca sabemos quando vamos dormir, aqui tudo é mudança e não há lógica temporal. Nunca sabemos quando vamos de fim-de-semana, pode ser à quarta-feira ou ao sábado, para estarmos no domingo à noite no destacamento. Pode não haver fins-de-semana seguidos para gozar. Podemos ir à cidade de Lamego, sair e entrar à civil, isto apenas nos fins-de-semana livres; há viaturas com hora sempre marcada para nos levar e trazer.
Lamego é uma cidade cativante mas pacata: tem a sede do CIOE, a Messe dos Oficiais e dos Sargentos, uma catedral com o seu museu adjacente, que eu visitei, onde há tapeçarias e quadros em madeira de arte sacra muito antigas, nomeadamente pela mão de Grão Vasco, muitas igrejas, o santuário de Nossa Senhora dos Remédios, que é uma pérola da arquitetura barroca, estatuária granítica sublime, um vetusto castelo, um tribunal, várias escolas e entre elas um liceu, bancos, correios, um cinema onde as senhoras não se inibem de levar cobertores para se agasalharem nas noites frias de inverno,  um bom café – O Café Central – com um mezanino mais elevado, de  onde os militares miram as meninas sentadas cá em baixo, um lar de raparigas pobres que os militares rondam, sedentos de esperanças, uma central de autocarros que esgotamos nos fins de semana em que estamos livres, um comércio antigo mas muito personalizado. Há ainda bonitos e muito bem tratados jardins públicos.
O curso é muito personalizado, sempre virado para o individuo, há um esforço de criação de grandes especialistas que depois serão integrados em companhias operacionais,
O plano de curso tem diversas provas, sendo as mais difíceis ou para alguns as mais temidas:
– O Fantasma;
– O Calvário;
– Prisioneiros de Guerra;
- A Dureza 11;
- As 24 horas de Lamego.

Breve descrição do que foram as principais provas:
– Fantasma:
Esta é uma prova fácil, mas requer muito controlo emocional, durante todo o percurso, de cerca de oito quilómetros.
A noite não tem luar, lá fora a escuridão é quase total, e até as luzes da cidade de Lamego morrem à míngua. Todos os instruendos estão sentados no refeitório, a aguardar serem chamados. De cinco em cinco minutos sai um militar, somos cronometrados como se fossemos fazer uma prova de atletismo. Quando saímos, é-nos entregue um papel, com instruções para nos dirigirmos à porta de armas, que dista cerca de duas centenas de metros do local onde estamos. À porta de armas espera-nos um instrutor que nos informa que temos de seguir pela estrada que dá acesso à cidade. Passados uns dois quilómetros, mais ou menos em frente das Caves da Raposeira, salta-nos à frente outro instrutor. Obriga-nos a entrar numa conduta de águas pluviais que atravessa sob a estrada, e cujo chão está repleto de tripas e de restos de animais que trouxeram de um qualquer matadouro. Temos de o percorrer a rastejar, sobre esta imundície, de onde emana um cheiro pestilento e nauseabundo. São oito ou nove metros repugnantes e asfixiantes. Já à saida, o mesmo instrutor informa-nos que temos de continuar a descer a estrada até à cidade. Lá sigo em corrida acelerada, que o declive da estrada ajuda. Logo à entrada da cidade surge um terceiro instrutor que me encaminha para o cemitério. Passado uma centena de metros chego ao portão que está encerrado, mas logo surge um outro instrutor que determina que entre por escalada e que siga sempre em frente, em passo de corrida até ao portão oposto, que também é para galgar, virar à direita e sempre em frente até destacamento.
Reinicio a minha prova, subir, descer, correr … e surge-me pela frente um fantasma de carne e osso com um cobertor branco enfiado na cabeça, como se fora um poncho, finto-o a correr; penso ter-me livrado do dissabor, mas não, logo à frente tropeço numa corda esticada que atravessa a alameda de lado a lado, caio, e a arma que ia às costas faz um barulho tremendo, de acordar os mortos. Sou agarrado pelos pés e pelos braços por alguns fantasmas que surgem do nada, para me arrastarem e depositarem em cima de uma campa de pedra que está tão gelada como a noite. Fico ali deitado uns cinco a dez minutos, em que sistematicamente, ora perguntam ora afirmam que tenho medo; digo que não, insistindo sempre que tenho muito frio, enquanto que tento resistir ao crescer de vómitos involuntários originado pelo cheiro nauseabundo que já se entranhou na roupa, passou à pele.
Insistem e mantenho-me firme, enquanto ouço outros camaradas em corrida, a tropeçar com grandes estardalhaços; finalmente deixam-me retomar a prova, reinicio a corrida mas agora com renovadas cautelas.
Pouco depois, da escuridão da noite surgem duas luvas brancas esvoaçantes que me tentam atingir, lá me consigo esquivar, corro para o segundo portão, subo-o, viro à direita e sigo para o quartel, onde termino a prova cronometrada. No outro dia soube que o standart da nossa estadia no cemitério passava pela paragem sobre algumas campas ou … pela entrada e permanência dentro de um jazigo tipo capela. A porta deste era fechada à chave, logo que o instruendo entrava; quando os instrutores não ouviam os gritos dos vivos-mortos, duas interpretações eram permitidas: ou o instruendo era um valente e estava calado ou … tinha desmaiado. O tempo que gastei e a classificação que tive, nunca chegaram ao meu conhecimento.
Esta é a essência da Prova Fantasma.
Nunca me pareceu justificável esta profanação do cemitério, nem o direito que assiste ao comando militar que o permite, tão pouco conheço a prática actual; certo que ao tempo o poder civil, militar e da igreja andavam de mãos dadas.           

– O Calvário:
É uma prova diurna. Há alguns tipos de equipamentos que têm de ser transportados à mão, entre dois locais distanciados de oito a dez quilómetros.
O equipamento, a sortear pelos instruendos, tem um peso unitário da ordem dos 20 kg e compreende bolas grandes (talvez cheias com terra),  rolos de arame farpado e  cruzes latinas em madeira, com cerca de três metros. A mim calha-me um rolo de arame farpado. Lá começa a prova: tiro a camisa, enrolo-a e coloco-a em cima do ombro a fazer de almofada, peço a um camarada para me ajudar a colocar o rolo de arame farpado às costas e lá sigo.
Nas descidas atiro o rolo de arame ao chão e vou-o guiando conforme posso, recorrendo, no possivel, à técnica do arco com roda da minha infância.
Despois segue-se a alternância com o rolo às costas e o atirar ao chão para rolar, determinada pelo declive do terreno até que, exausto e  muito dorido, ultrapasso a linha de chegada
Pior para os camaradas que têm de transportar as bolas: devagar e desageitadamente no plano e nas subidas, tais que mulheres muito grávidas, e desesperados nas descidas em que as bolas são rainhas de velocidade, que eles por desistir de controlar.
Os homens das cruzes serão os mais penalizados no arrastar das peças; a partir de metade do percurso, assemelham-se a senhores dos paços do alcatrão..
Chegámos ao local previsto para a concentração, cada qual com a sua peça, que finalmente será definitivamente largada. São depositadas, para pouco depois serem carregadas nos camiões que nos trazem para a unidade.
Assim termina a operação, que à imagem recorrente dos camaradas q\ue transportam as cruzes, é um autêntico calvário.
Embora contando para classificação individual, esta prova sendo diurna, facilita o despertar sentimentos de interajuda; como tive oportunidade de constatar, ao longo de todo o percurso: há instruendos que se agrupam para efeito de incitamento psicológico de camaradas mais desanimados ou mesmo para transportar peças ou equipamentos que eles já não conseguem arrastar.  
Ao longo do caminho ajudamos sempre o companheiro que está em dificuldade, é uma regra fundamental que se respeita aqui na formação e que vigora em todas as operações; a classificação, sendo importante para efeito da posterior colocação, face a esta regra, é sempre desvalorizada.

– Prisioneiros de guerra:
É uma prova individual de tortura psicológica. A noite está a começar, estamos todos preparados para sair do destacamento. Os olhos estão vendados e as mãos atadas atrás das costas. Brevemente as Berliets carregadas de soldados arrancam para uma serra desconhecida onde nos vão largar. Vão dar voltas e mais voltas para baralhar a nossa orientação. Lá vamos aos solavancos, seguramente por estradões de terra batida. Decorridas cerca de duas horas paramos, um militar é colocado fora da viatura, arrancamos e andamos mais um pouco, outro é deixado para trás, ... outro, mais outro, ainda mais outro, não sei quantos, já lhe perdi o conto. Chega a minha vez, sou deixado num caminho de mato, com os olhos vendados, as mãos atadas e deitado no chão. Tento levantar-me, consigo ficar de pé, mas súbito cambaleante, vou embater numas pedras que estão ali ao lado, tento tirar as amarras, não consigo, tento encontrar uma pedra para cortar o baraço que me ata as mãos, passado algum tempo lá consigo cortar o fio, tiro a venda dos olhos, ponho-me à escuta. No silêncio da noite, ouço de vez em quando um camarada a chamar, sigo no sentido do chamamento e vou desatando os meus camaradas. Depois, já muitos, começamos a percorrer o estradão na direção dos apelos que ainda se ouvem, encontramos mais colegas amarrados, desatamos as cordas, por fim parece-me que estão todos desamarrados. Agora a missão é cada um a correr para o quartel. Pelo crepúsculo das luzes da cidade de Lamego consigo estabelecer uma aproximação  do local onde estou, apronto-me para regressar.
Não houve instruções em contrário, portanto vigora a regra máxima de todas as provas: não podemos circular pelas estradas nem ser apanhados pelos instrutores; há sempre viaturas na estrada à nossa procura, se formos apanhados voltamos ao início da prova.
Felizmente as viaturas militares fazem muito barulho, conhecemo-las pelo trabalhar do motor e pela forma; quando as ouvíamos ou víamos fugíamos para dentro do mato, como coelhos.
Por fim lá chegámos ao quartel, a mesa está posta, mas não há vontade de comer, só tomar banho e ir para a cama, enquanto alguns camaradas ainda vão chegando.      

– A dureza 11:
Estamos quase no final da nossa preparação; alguém alerta para o facto de na identificação da prova figurar o numero da semana do curso,  … mas logo de seguida recordo-me das lições de mineralogia  e começo a ficar preocupado, porque “dureza 11” significa que passamos ou vamos passar além do máximo da Escala (de dureza) de Mohs. De facto, são quatro dias dramáticos.  É uma prova de resistência e de dureza; de resistência à fome, à sede, ao sono e ao frio; de dureza pelos exercícios que nela decorrem. É um tempo sem lógica para nós, onde tudo nos espera e tudo pode acontecer: dormimos uma, duas horas por noite. Podemos almoçar só pão com café ou comer batatas cozidas com bacalhau, às três da manhã. A alimentação é muito pouca, temos como suplemento possivel galinhas que cacarejam assustadas, na gaiola ali memso ao lado; podemos mata-las e comê-las como entendermos, assadas, cruas, com penas, sem penas. Vi colegas meus a comerem nacos de carne de galinha crua. Eu prefiro as castanhas e a fruta como suplemento alimentar. Há sempre exercícios com balas reais na câmara, prontas a partir de rajada ou tiro a tiro, com a arma apontada ou com a arma encostada à anca, contra alvos de papel, onde a pontuação é anotada. Por isso, fiquei algo surpreendido quando cheguei a Viana de Castelo, à semana de campo, com os exercícios a serem dados com bala simulada, quando estávamos a poucos dias de embarcar para Angola; terá pesado o facto de ter saido de Lamego directamente para o IAO do batalhão. Montamos e desmontamos armas mesmo durante a noite, fazemos e desfazemos armadilhas. Fazemos patrulhas, assaltos simulados, com dezenas de metros a rastejar ou a correr e com queda na máscara e tiro imediato. Os quatro dias são passados nisto, um frenesim inebriante, que a todos toca, mesmo aos instrutores que também andam num rodopio. A resistência física  é elevada somos capazes de andar uma tarde inteira sempre em corrida, com passada certa. A fome? Um dia inteiro sem comer. Estamos a ficar robots pensantes. Mas o fim do curso aproxima-se e começamos a sentir uma sensação de alívio, pese embora o facto de terem ficado para trás camaradas que provavelmente não voltaremos a ver e com os quais criámos laços de amizade como se fossem irmãos de sangue.
Ao quarto dia regressámos ao destacamento onde uma outra grande surpresa nos espera.  

– As 24 horas de Lamego:
No dia em que tinha terminado a Dureza 11, chegados ao destacamento deu para tomar um magnifico banho e posteriormente saciar o apetite com um jantar com todos.
Quando esperavamos poder sair e avançar para um merecido repouso, fomos obrigados a ver um western;  já não me lembro do enredo, mas o título – O homem que matou Billy the Kid - ficou-me para sempre na memória. O filme é projetado no refeitório e são muitos os colegas que adormecem nas cadeiras, alguns acordam ao som dos tiros, outros porque cairam ao chão, mas ainda há os que caiem e continuam a dormir. Filme terminado e tudo em marcha rápida para lençóis … que quase não chegam a aquecer porque, menos de uma hora decorrida, o sono é interrompido ao som das granadas.
E já todos na parada, fomos informados de que se vai ter lugar  uma nova prova: as vinte e quatro horas de Lamego. É uma prova de conjunto, que numa fase mais avançada passa a ser de avaliação de equipas de cinco instruendos. Preparo o meu equipamento, como o tempo está de chuva resolvo levar o meu poncho, que pesa cerca de um quilo. Saímos do destacamento a pé, seguimos pela estrada nacional que liga Penude a Castro Daire, de um e outro lados, distribuidos em duas filas indianas. Começo a ver  camaradas que literalmente dormem enquanto caminham, cambaleiam, andam aos ziguezagues; outros mais resistentes e mais atentos na proximidade, agarram-nos pelo braço e puxam-nos para dentro da estrada, ou noutros casos lateralizam-nos e ajudam-nos a caminhar no ritmo de sono superficial. Passámos por Sucres, Candal, Matanchinha, Magueijinha, Bigorne e chegámos ao Colo do Pito. São dezoito quilómetros penosos que levam horas a percorrer. A manhã está a nascer. São formados grupos de cinco elementos, tomo a chefia de um grupo, entregam-me  uma bussola, uma Carta Militar à escala 1/25 000, e instruções escritas com azimutes definidos, que permitem identificar pontos notáveis que temos de atingir sequencialmente.
É também dado a cada instruendo uma sandes e uma peça de fruta, para as vinte e quatro horas da prova. O primeiro objetivo é atingir o cume da Serra de Santa Helena, uma enorme montanha rochosa. O percurso é sempre a direito, dista cerca de três quilómetros do Colo do Pito. Há diversas provas a realizar na serra, andamos sempre à corta mato. Num conmtrolo, sou informado de que a minha equipa tem cerca de duas horas de avanço relativamente ao tempo previsto, mas num dos últimos percursos engano-me, perdemos muito tempo, desmoralizamos. Chegamos a Tarouca ao princípio da noite, a população dá-nos maçãs e pão e nós sem dinheiro para pagar. Ainda faltam dezoito quilómetros por estrada ou dez a corta mato para chegar a Penude. Começa a chover, a noite fica negra como breu e o frio aperta. Um elemento do meu grupo oferece-me cinco mil escudos pelo meu poncho, quando eu ganhava como desenhador de construção civil dois contos e meio por mês; mas o poncho não sai dos meus ombros. Abrigo os quatro soldados do meu grupo debaixo de um alpendre, nas traseiras de uma casa que me parece abandonada. Salto para a estrada faço sinais paragem a todas as camionetas que seguem na direção a Lamego. Umas param outras não e das que pararam nenhuma ia para Lamego.Finalmente aparece uma que vai para a cidade, e consigo convencer o condutor a dar-nos boleia.
É uma velha camioneta de caixa aberta, para onde subimos; ninguém vai na cabina, porque podemos ser vistos pela ronda que patrulha as estradas. Passados dez minutos vi a coisa mais inacreditável da minha vida: homens deitados a dormir em cima de uma camioneta com a chuva a cair-lhes em cima e que deslizavam pela caixa ao ritmo de cada curva, embalados num sono profundo. Sem mais problemas lá chegámos ao destacamento ainda dentro do prazo das vinte e quatro horas. Houve colegas que demoraram quase dois dias a fazer o mesmo percurso, teriam dormido nalgum palheiro? Nunca o soube. No destacamento apesar da mesa, como sempre, estar  posta à nossa espera,  não comi nada. Tomei um banho quente e fui dormir, sem tempo contado, e foi o resto daquela noite, o dia seguinte e a noite que lhe seguiu. Esta foi a prova mais dura que realizei em Lamego, sofri mais neste dia do que nos vinte e sete meses de guerra que passei em Angola.
As histórias paralelas a esta narrativa ficaram por contar, é possível que um dia aqui as retome,  mas o texto já vai longo e a memória começa a ser apagada pelo tempo, já lá vão mais de quarenta anos sobre estes acontecimentos e o tempo não perdoa.
Estas memórias já deviam ter passado a memória futura há muito, quando ainda estavam frescas, mas só agora é que surgiu a oportunidade e vontade de o fazer.
Apetecia dizer que estou no sortilégio do Fernão Mendes Pinto, que esperou pela idade madura para verter em Peregrinação o multifacetado das suas aventuras e desventuras.
Escasseia-me a arte e engenho de um Fernão Lopes, para reportar como desejava a realidade nua e crua, real, objetiva e concreta.
Sinto-me tão condicionado quanto Milos Forman, no seu Amadeus, me parece conseguiu de forma sublime, sugerir que estaria psicologicamente Mozart enquanto escrevia a sua última obra, o Requiem, uma missa fúnebre, sob forte influência da morte do pai e na convicção de que seria para o seu próprio funeral:  não come, não bebe, não dorme, não pára.
Há dois dias que ando nisto, escrevo, rescrevo, vou à frente, volto atrás, só penso nisto; são vinte e três horas do dia vinte e seis de julho de dois mil e doze e eu aqui agarrado a esta coisa que não mais me larga.
Para que a memória não se apague aqui fica o meu testemunho.
26 de julho de 2012
Ferreira,
ex-furriel miliciano, CCS